O nosso cérebro musicófilo e outras estórias

Já muitos se viram a relembrar ou a evocar determinados acontecimentos quando ouvimos uma determinada música que estava a tocar, porque os estímulos auditivos podem reforçar a memória de eventos.

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"A música pode desempenhar um papel fundamental na experiência humana" Rui Gaudencio/Arquivo
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A música é uma forma de comunicação universal que transcende barreiras linguísticas. Pode ser usada para expressar emoções, contar histórias e transmitir mensagens, promovendo harmonia entre as pessoas de forma ímpar.

Quando ouvimos melodias das quais gostamos, o cérebro produz dopamina, um neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa, e daí esta ser uma fonte constante de deleite para muitos de nós. Pode evocar uma gama de emoções vasta, como a alegria e o entusiasmo, mas também a tristeza e a melancolia, já que ativa regiões do cérebro associadas ao processamento emocional, como o sistema límbico.

Ainda mais interessante, é poder ser um auxiliar poderoso na formação de memórias. Já muitos de nós se viram a relembrar ou a evocar determinados acontecimentos de vida quando ouvimos uma determinada música que estava a tocar naquele momento, porque os estímulos auditivos podem reforçar a memória de eventos. Além disso, algumas melodias contribuem para a concentração e a produtividade, dependendo do tipo de música e das preferências individuais; e determinados sons podem reduzir a ansiedade e ainda ajudar em processos fisiológicos como o início do sono, com o white noise.

Um dos livros mais interessantes escritos acerca dos efeitos da música no cérebro é o do famoso neurologista Oliver Sacks, publicado em 2007. A obra Musicophilia explora a interação entre a música e o cérebro humano, com descrição de casos clínicos e histórias reais que demonstram como a música pode afetar e transformar a experiência humana, especialmente em indivíduos com condições neurológicas. Há uma citação que desperta sempre muita curiosidade e gera várias questões quando abordamos o assunto em palestras, que é a seguinte: “Os neuropatologistas hoje teriam dificuldade em identificar o cérebro de um artista plástico, um escritor ou um matemático — mas reconheceriam o cérebro de um músico profissional sem hesitação alguma.”

Ora isto pode parecer estranho porque sabemos que a anatomia do cérebro de um músico não é fundamentalmente diferente da de um não-músico. O que Sacks quis dizer é que a estrutura e a função do cérebro podem ser alteradas pela formação e prática musical. Os músicos frequentemente têm as regiões do cérebro relacionadas com processamento auditivo, coordenação motora e memória mais desenvolvidas, quer em estrutura quer em função. Isso resulta da sua necessidade e capacidade de integrar informações sensoriais e motoras. Estas diferenças resultam de anos de prática e experiência, e não de diferenças anatómicas inatas e podem ser reversíveis em certa medida se se parar de praticar por um período prolongado.

Ao longo do livro, Sacks relata uma série de casos curiosos de pacientes com mudanças notáveis de comportamento, cognição ou estado emocional devido à música. Ele descreve como alguns pacientes experimentam alucinações auditivas relacionadas com a música, como ouvir uma melodia que não está a ser reproduzida na realidade. Pessoas com alterações do espetro do autismo, por exemplo, podem manifestar habilidades musicais extraordinárias ou talentos incomuns, demonstrando a capacidade única do cérebro de se relacionar com o som. O livro também destaca como a música pode ser usada como terapia em contextos médicos, ajudando a melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças neurológicas.

Quer seja como uma fonte de entretenimento, como ferramenta terapêutica ou como uma forma de expressão, a música pode desempenhar um papel fundamental na experiência humana e é um campo de investigação científica fascinante. Esta pode desafiar o cérebro de várias formas, quer para os executantes, quer para os ouvintes, e contribuir para a melhoria (ou harmonia) da função cognitiva.

Como exercício, proponho que oiçam a música “Now and Then” recentemente lançada pelos Beatles, conseguida após a tecnologia prodigiosa ter permitido o processamento e análise da gravação original deixada por John Lennon, acompanhada da memorável lição do neurologista Oliver Sacks no livro Musicophilia.

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