Os donos da bola
Diz-se, com propriedade, que o futebol é o maior desporto do mundo. Pelas paixões que desperta, pelo entusiasmo que transmite e, claro, pelas discussões mais ou menos acaloradas, normalmente pouco racionais e influenciadas pela cor clubística. É-o assim em Portugal, mas não deixa de ser assim um pouco por todo o lado. Faz parte do que somos, da cultura que temos e daquilo a que se usa chamar o amor à camisola.
A defesa do clube, um certo facciosismo que se aceita porque faz parte do processo, é uma forma de união, uma forma de partilha, uma espécie de culto e um modo de vida que nos leva todos os fins-de-semana a Alvalade, à Luz, ao Dragão ou a qualquer outro estádio, consoante a cor que decidimos escolher.
Mas, por muito que nos custe uma derrota ou a vitória de um rival de sempre, conseguimos discernir que é desporto e que é normal que ganhe um e que nada disto, nas medidas certas e dentro de convenções universais de comportamentos civilizados, traz grande mal ao mundo.
O futebol e as suas vitórias ou derrotas são momentos efémeros, muito efémeros. Diverte-nos ou entristece-nos, desesperamos por momentos ou rebentamos de alegria momentaneamente, mas não é nem pode ser um tema de vida ou de morte, nem ser terreno fértil apenas de uns que se decidem usar dele para o exacto contrário daquilo que são os valores do desporto. O destilar de ódio, a violência gratuita e a busca de cobertura para actividades e actos (para ser simpático) ilícitas.
Eu - como penso que a maioria dos milhões de adeptos em Portugal - tenho uma enorme dificuldade em perceber a dinâmica, os valores, as responsabilidades e as prioridades da indústria do futebol. Que como qualquer outra que se preze tem objectivos. Desde logo o sucesso desportivo que está aos dias de hoje umbilicalmente ligado ao sucesso financeiro. Os melhores são os que gerem melhor os seus clubes, que conseguem os melhores jogadores, que se organizam melhor e que acabam por jogar as melhores competições que são as que todos querem porque geram mais receitas. E as receitas vêm, por incrível que pareça, dos que consomem o futebol, dos que semana após semana voltam ao estádio, que pagam os bilhetes, que pagam as quotas, que compram o merchandising e compram uma subscrição mensal de canais premium para assistir ao maior espectáculo do mundo (diria que o circo perdeu o título há já alguns anos).
E são esses mesmos que as marcas que gravitam na esfera do futebol querem impactar, para que consumam e imagine-se só, façam aumentar as suas receitas e melhor que isso, os seus lucros. De uma forma simplista, diria que o futebol não é muito mais complicado que isto. Mas na realidade é. Porque se há dinheiro há muito quem lhe queira pegar e que esteja disposto a hipotecar o que quer que seja em proveito próprio ou de um grupo restrito de gente.
Parto desta reflexão por via de dois momentos que se passaram nos últimos dias (Benfica-Sporting e AG do FC Porto) e que me fizeram voltar a pensar nisso mesmo: numa indústria que se quer de sucesso, no produto que se apresenta, nas opções que fazem e nas prioridades que esta indústria insiste em seguir.
Aparentemente, os dois eventos que refiro não têm muito que ver um com o outro. Mas têm. Têm em comum aquilo a que o futebol se amarrou. A uma minoria que toda a gente quer fingir que não existe, mas que condiciona o que deveria ser uma experiência inesquecível, daquele que se intitula o maior desporto do mundo e que se trata com um tipo de condescendência irritante numa atitude cobarde de manter a maioria “enjaulada” por um problema de uma minoria que usa a violência como arma de chantagem, sendo que o seu controlo é a desculpa eterna para se adiar a resolução do problema.
Na semana passada um dos meus filhos desafiou-me para ir com ele ao Benfica-Sporting. Equacionei. Sofro menos no estádio, pensei. Depois explicou-me: 16h30 em Alvalade. A partir dessa hora, somos todos ultras. Daí partimos em cortejo, escoltado pela polícia para o estádio da Luz. Tem de se ter cuidado, por que se pelo caminho se “põe o pé na poça”, está sujeito a levar uma sticada de um agente que não permite veleidades a ninguém. Passado a hora e meia de jogo, fica retido outra hora e meia no estádio para fazer o regresso de volta a Alvalade. Tudo isto em nome do controlo das massas que se descontrolam em momentos de grande entusiasmo. E o mesmo se passa em qualquer derby ou clássico, em Lisboa, no Porto, em Braga ou em Guimarães.
Segunda-feira fui alertado por um bom e velho amigo que desolado me avisou que a AG do FC Porto ia ser dolorosa. Estava a Leste, confesso. Vejo as notícias. Um grupo de gente conhecida e facilmente identificável aterroriza a maioria numa atitude de clara intimidação. Ninguém faz nada. Há agressões, insultos, perseguições sem que os responsáveis do clube ou da segurança tenham controlo no que quer que seja.
Em suma, num país democrático, civilizado em pleno século XXI, há uma ilha que se chama futebol. Nessa ilha há uma série de grupos, minoritários, que toda a gente conhece. Pelos comportamentos desviantes desses grupos, a maioria é incentivada a não levar a família à bola, a ter cuidado no caminho do estádio, a não manifestar a sua preferência clubística e a ter receio físico duma ida ao futebol.
Mais: As forças de segurança têm-nos identificados, sabem que levam material pirotécnico para os jogos (proibido), sabem como o passam para os estádios, mas preferem fechar os olhos a bem do controlo de grupos de risco.
A maioria priva-se da ida à bola e já acha normal. Os clubes escudam-se por trás destes grupos, que, convenhamos, há alturas nos dão jeito, não vá a tendência mudar e quererem acabar com o nosso reinado.
A maioria não pode beber uma cerveja calmamente no estádio, por que uma minoria não sabe beber. E o álcool em excesso gera comportamentos e, por isso, mais que prevenir é preciso proibir.
As marcas (de cervejas p.e.) não podem ser consumidas no momento mais importante de celebração. O jogo. As drogas correm abundantemente. Nas minorias. Mas fingimos que não vemos. É melhor, não se vão irritar e fazer distúrbios.
Mas levamos com o cheiro e inalamos os charros que não queremos fumar. Uns são privados de actividades legais e outros é-lhes permitido o que a lei proíbe ao comum dos mortais. Sintomático.
O futebol é talvez a única actividade que vive na idade média. Privamos a maioria de direitos em prol do suposto medo de uma minoria. Que ameaça a ordem, semana após semana. Que insulta, que agride, que transgride e que insistimos em tratar como um grupo a quem tudo é permitido. Até ao dia, que tenha mesmo de se resolver, põe em risco a integridade das pessoas e a democracia de algumas instituições. Clubes, governos, direcções, comentadores, jornalistas... A chamada indústria, vive numa bolha.
Espero que um dia a bolha não rebente e não deixe a indústria manchada de uma nódoa que jamais ser lavada. Começa a ser tempo.