“Onde é que tu estavas quando aconteceu o genocídio?”
O maior terrorista desta história é o governo criminoso e genocida de Israel, que, com a nossa cumplicidade assumida, vai deixar cicatrizes de ódio em milhões de pessoas para sempre.
A missão humanitária que marcou mais a minha vida e as minhas emoções foi, claro, a primeira, na República Democrática do Congo, que é a pior guerra desde a Segunda Guerra Mundial, em termos de mortos, onde já morreram cerca de seis milhões de pessoas, e cujo conflito, apesar de, como todos os outros, ser altamente complexo nas suas origens, começa em larga medida após e como consequência muito directa do genocídio do Ruanda, em 1994.
Durante meses li muita coisa, ouvi histórias e vi as consequências da guerra e das suas origens nas camas do hospital onde trabalhava nas profundidades das montanhas do leste do Congo, de uma beleza indescritível, mas ladeadas por guerra a toda a volta. No final da minha missão no Congo, tinha que sair pelo Ruanda, e fiquei uns dias na capital, Kigali.
Era para mim quase uma obrigatoriedade moral visitar o memorial do genocídio do Ruanda, pela vontade de melhor compreender, e pela sensação de obrigatoriedade que todos os seres humanos deviam ter de absorver os maiores erros do passado, para que NUNCA MAIS sejam palavras tatuadas no nosso pensamento.
A maioria de Hutus decidiu eliminar a minoria de Tutsis. Durante três meses foram mortos cerca de um milhão de ruandeses, a grande maioria à catanada. Uma das histórias que mais me emocionaram até hoje, num relato na primeira pessoa num documentário, foi a de um marido Hutu que, perante a evidência de que as milícias iriam matar a sua mulher Tutsi, pagou com todo o seu dinheiro pela bala que matou a sua mulher, para que esta fosse morta a tiro, e não à catanada.
A inundação de emoções no memorial do genocídio é sufocante, como muita gente já sentiu ao visitar Auschwitz, que eu também visitei com 20 anos e me marcou para todo o sempre. No memorial do genocídio do Ruanda, enquanto recolhia as descrições, as histórias, o trabalho absolutamente heróico dos Médicos Sem Fronteiras e da Cruz Vermelha Internacional, que foram as únicas organizações que ficaram no país para ajudar, e uma pequena força de capacetes azuis das Nações Unidas totalmente impotente perante a fúria das massas, o que dominou os meus pensamentos foi “como é possível que tenha demorado três meses a comunidade internacional a reagir?”, quando os apelos do terreno eram mais do que evidentes de que decorria um genocídio.
O Holocausto foi nos anos 1940 e ainda está muito presente em todos nós, mas nem os meus pais eram vivos. Em 1994 eu já tinha 14 anos e nem soube de nada. E quando perguntei aos meus pais, depois de regressar do Ruanda, o melhor que me conseguiram dizer foi que ouviram falar de “qualquer coisa”. Outros tempos, com menos informação sobre o mundo e, claro, a enorme desumanização dos africanos tristemente visível até hoje.
Desumanização, desumanização, desumanização, é isso que tão bem sabemos que se passou no Holocausto e que tão bem nos explica a forma como os Hutus chacinaram um milhão de Tutsis, seus irmãos, seus amigos, seus concidadãos, gente filha da mesma terra. Foi isso que mais me chocou e mais choca a toda a gente, é a facilidade com que se constrói uma narrativa que transforma seres humanos iguaizinhos a nós em animais, não daqueles fofinhos, mas tipo insectos que esmagar até nos dá jeito. E, depois, choca-me porque é que ninguém fez nada. Porque é que os meus pais não fizeram alguma coisa, nem que seja levantar a voz? Quem são estas vergonhosas pessoas que, na história, sabiam do que se estava a passar e decidiram assobiar para o lado?
Pois agora, na Palestina, o manual do genocídio que está a ser aplicado é exactamente o mesmo. Desumanizar, desumanizar, desumanizar todos os palestinianos, ao ponto de que toda uma fatia mais poderosa do planeta, na qual nós nos incluímos, permite bombardeamentos a civis absolutamente indiscriminados, destruição de dezenas de hospitais que são o santuário da humanidade, propositadamente, deslocação forçada de 1,5 milhões de pessoas que estão sem água, sem comida e sem local seguro para dormir porque as bombas caem em todo o lado.
Além do “cemitério de crianças” dos bombardeamentos, temos mulheres a morrer no parto em agonia, crianças a serem amputadas aos gritos sem anestesia, crianças a morrer por falta de um antibiótico ou de uma cirurgia para retirar o apêndice, dezenas de jornalistas mortos, dezenas de trabalhadores de ONG e das Nações Unidas mortos… e só não vê quem não quer que isto é um genocídio de um povo, porque já o era antes de 7 de Outubro, mas de uma forma mais silenciosa, porque Israel cumpre o seu plano sionista, sempre no limite do fora-de-jogo da opinião pública da comunidade internacional, que agora lhe deu, ou seja, demos, luz verde para matar até ao último palestiniano.
O plano é óbvio, primeiro Gaza, e depois a Cisjordânia, que já está transformada em pequenas Gazas. Sufocam-nos até à radicalização, e depois eliminam-nos a todos com a limpeza moral de que alguns são terroristas, e são. Já condenei o Hamas em todos os meus textos, não só pelo que fizeram, mas porque tive o enorme desprazer em conviver com o seu ódio e radicalização. Mas o maior terrorista desta história é o governo criminoso e genocida de Israel, que, com a nossa cumplicidade assumida, vai deixar cicatrizes de ódio em milhões de pessoas para sempre e, claro, o ódio gera ódio, a radicalização gera radicalização, e vamos todos pagar as consequências dos extremismos nas suas diferentes formas, sejam anti-semitas, sejam islamofóbicos, ou o “simples” ultra-nacionalismo que cresce em todos os países e que está nas antípodas dos direitos humanos, que devia ser a luta prioritária de todos nós.
Penso que há também uma questão geracional. Os meus pais foram educados com as premissas de que as colónias eram Portugal, e que o nosso colonialismo era “bonzinho”. Como tal, deixar matar outra raça, outro povo, em nosso benefício parece algo normal para quem teve esta educação em casa e nas escolas. Eu diria que na minha geração e para baixo, a maioria já percebeu que a palavra “descobrimentos” esconde o que terá sido o maior genocídio da história da humanidade, onde durante cinco séculos milhões de africanos foram traficados e mortos para que Portugal fosse mais rico, e já não se aceita com tanta leviandade ser cúmplice de mais um genocídio. As palavras NUNCA MAIS são verdade para todos os povos, todas as etnias, todas as religiões, e todas as cores de pele.
Um dia, podem ter a certeza que os vossos filhos vos vão perguntar “Onde é que tu estavas quando aconteceu o genocídio?”, e vocês vão corar numa culpa vergonhosa, se não estiverem do lado da humanidade, do lado do cessar-fogo imediato, e do lado do NUNCA MAIS.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras