Soldados-fantasma portugueses: carne para os canhões nazis
A história ignorada dos cerca de mil portugueses que combateram os exércitos de Adolf Hitler em França na Segunda Guerra Mundial.
A hora mais angustiante é aquela em que a noite cede lugar aos primeiros alvores, ainda antes de o céu começar a arder na linha do horizonte, lá para leste. É a hora em que os alemães atacam. Tem sido assim todos os dias nas últimas duas semanas. Todos os dias. O inferno começara a 10 de Maio de 1940, quando os alemães invadiram a França. Primeiro, são os bombardeamentos da artilharia, da aviação e dos blindados. Quando eles se calam, naquele curto espaço em que se faz um estranho silêncio, Artur Pádua já sabe que a infantaria alemã vai avançar, linha de silhuetas cinzentas a correr no cinzento do lusco-fusco. É delas que partirá o stacatto agudo das pistolas-metralhadoras, riso miudinho e nervoso, entrecortado pela tosse mais cava das carabinas Mauser.
Artur Pádua encolhe-se tanto quanto pode, espalma-se contra a terra, como se quisesse aprofundar a trincheira. Se trincheira se lhe pode chamar. É um buraco rudimentar, escavado durante a noite, depois de uma retirada imposta pela pressão constante do inimigo. Já não faz ideia de há quantos dias a cena se repete desde que chegou à linha de fogo. Sabe apenas que está a uma centena de quilómetros a norte de Paris. E sabe também que já não é possível contar os mortos, tantos são eles.
Nunca tinha imaginado que a guerra fosse assim. Lá na terra onde trabalhava desde que chegara a França, a pequena localidade de Bogny-sur-Meuse, a guerra era uma noção abstracta, mais longínqua que Sedielos, a aldeia de Peso da Régua onde nascera a 18 de Maio de 1908 e de onde emigrara, como tantos outros cavadores de enxada, porque a vida em Portugal era madrasta e a miséria muita. Mas agora não é tempo para pensar nisso. As explosões pararam, com uma precisão germânica, matemática. Artur Pádua pega na carabina, um modelo mais recente do que aquele com que fez a recruta, levanta-se, apoia a arma no simbólico parapeito de terra à sua frente e espreita, à procura do inimigo que vai aparecer algumas centenas de metros à sua frente e que deve matar, se não quiser ser morto.
Não é que esteja arrependido, mas já não tem a certeza de ter feito bem, quando se ofereceu como voluntário para o Exército francês, em Setembro de 1939. A França declarara guerra à Alemanha no dia 3, depois de os exércitos de Hitler terem invadido e ocupado a Polónia, e Artur Pádua achou por bem defender o país que o acolhera e onde vivia e trabalhava. Por um lado, era isso que a Federação dos Emigrados Portugueses em França preconizava numa circular enviada ao presidente do Conselho de Ministros francês e, pelo outro, dizia-se que quem fosse para a guerra teria depois direito à nacionalidade francesa. Só que ninguém lhe explicara o que era a guerra, nem que ela, ao contrário do que cantavam os soldados franceses em 1914, não iria ser fraîche et joyeuse, fresca e alegre…
Número 31
No centro de recrutamento de Charleville-Mézière, no maciço das Ardenas, onde se juntam as fronteiras com o Luxemburgo e a Alemanha, não muito longe da sua casa, fora dos primeiros voluntários estrangeiros a apresentar-se. Era isso que certificava o seu número de matrícula — o 31, o mesmo número de anos que tinha “festejado” quinze dias antes, debaixo de fogo. Nessa altura, tinham-lhe pedido o nome, a data e o local de nascimento, a morada em França e a pessoa que devia ser contactada no caso de… O sargento francês que o inscrevera nos registos chamou-lhe Arthur Padna e Arthur Padna havia de ficar até o fim da sua vida, porque não sabia ler nem escrever. A inspecção médica deu-o como apto para o serviço militar e registou que media um metro e sessenta. “Era muito robusto e entroncado”, recorda o seu filho Alain Padna e a nora, Therèse Pinto, que ainda hoje vivem em Bogny-sur-Meuse.
A partir desse momento, o destino de Artur Pádua confundia-se com o destino trágico de mil outros portugueses que combateram os exércitos nazi e defenderam a França. Entre 600 a 800 — os arquivos militares não dão números exactos — ficaram lá, mortos, feridos ou prisioneiros dos alemães.
De Charleville-Mézières foi enviado para o campo de Barcarès, onde conhece centenas de outros portugueses e faz a recruta. Depois, é integrado no 22.º Régiment de Marche dos Voluntários Estrangeiros (RMVE), formado com base numa nota secreta do ministro da Defesa Nacional e da Guerra. Barcarès é um dos cinco campos situados nos Pirenéus franceses, perto da fronteira com a Espanha e junto ao mar Mediterrâneo. É também a antecâmara do inferno. Os campos, a que o ministro francês da tutela chama “campos de concentração”, eram areais pantanosos, agrestes, rodeados de arame farpado e batidos pela chuva e o vento gelados do Inverno.
Foi aí que as autoridades francesas, depois de Franco ter ganhado a guerra, parquearam os republicanos espanhóis e os voluntários das Brigadas Internacionais, “tratados como infames vencidos, castigados pela miséria e pela humilhação”, escreve a historiadora Evelyn Mesquida. Nos anos 1930, a Europa e as democracias do mundo inteiro, em geral, temiam o comunismo, mas não antipatizavam com o totalitarismo de direita. A Hitler, Mussolini e Franco vinham juntar-se o fascismo de Seipel, Dolfuss e Schussnigg, na Áustria, Miklós Horthy, na Hungria, Pilsudski e Beck na Polónia, Antonescu, na Roménia, Tiso na Eslováquia e Salazar, em Portugal.
“Parecíamos vagabundos ou mendigos”
A passagem de campos de concentração a campos de instrução militar foi simples. Os refugiados foram despejados e entraram os voluntários. Em Barcarès são alguns milhares, em condições execráveis. “O campo tinha um aspecto repugnante. As instalações eram insalubres, feitas de barracas meio demolidas, muitas vezes sem vidros e, por conseguinte, muito ‘arejadas’. Acontecia com frequência que a areia, empurrada pelo vento, se incrustava nos dormitórios, nas roupas e até na comida. Durante as tempestades, o mar também invadia o campo e, nesses casos, as instalações tinham de ser evacuadas”, escreve Eric Abadie, citando o testemunho de voluntários.
Em cada barraca viviam 120 homens. Segundo Boris Holban, um voluntário romeno que viria a ficar célebre pelo papel desempenhado na resistência contra os alemães, “as camas são fardos de palha cheios de pulgas postos em cima de pranchas de madeira pousadas no chão. Não há sanitários. A sujidade reina em toda a parte. As latrinas são estrados de madeira, com um buraco no meio, pousados em cima de grandes bidões que têm de ser despejados manualmente”.
Quanto à alimentação, escreve Hans Habe, voluntário e célebre escritor húngaro, “a comida era precária, insuficiente e de má qualidade. Não havia refeitório. Três vezes por dia levavam um grande caldeirão para cada barraca, com um líquido indefinível. Sentávamo-nos nas camas e estendíamos as nossas gamelas de alumínio, como nas prisões. (…) O pão, distribuído cinco vezes por semana, tinha tanto bolor que, apesar dos estômagos vazios, preferíamos enterrá-lo na areia. Duas vezes por semana davam-nos ‘Macaco’, uma carne enlatada que datava da Grande Guerra e que fazia jus ao nome”.
No plano militar, as coisas não são melhores. Boris Holban conta que “ninguém conseguia encontrar um uniforme completo na Intendência. Acontecia com frequência que um voluntário estivesse vestido com umas calças de camuflado demasiado pequenas, um casaco azul e uma boina branca da Legião Estrangeira. Nem todos tinham botas ou sapatos. Alguns tinham os pés apertados, enquanto outros calçavam números demasiado grandes para eles. Outros ainda usavam tamancos”. “Parecíamos vagabundos ou mendigos”, na opinião de Habe.
Regimentos de cordel
Quanto ao armamento, obsoleto e insuficiente, a situação é ainda pior. “Quase não havia armas para a instrução. Nem 5% dos recrutas tinham carabinas modernas. Os outros tinham carabinas que datavam de 1891 a 1916”, observa Hans Habe a quem coube uma velha Remington que pesava oito quilos. “A culatra estava ferrugenta, de modo que a bala caía, se a arma não estivesse rigorosamente na horizontal. As poucas espingardas-metralhadoras datavam da guerra do Rife.”
No relatório de um oficial sobre as condições operacionais do 22.º RMVE lê-se que “os capacetes não tinham correias e as carabinas não tinham bandoleiras, de modo que os soldados substituíam-nas por cordéis; o mesmo acontecia com as cartucheiras dorsais e com os cantis da água, também eles seguros com cordéis; em vez de mochilas, os homens enrolavam as suas coisas em panos de tenda, atados com cordéis”.
Omnipresente, o cordel iria funcionar como um estigma que persegue os regimentos estrangeiros até ao fim da guerra: os alemães — mas também as outras unidades francesas — baptizaram-nos com o apelido de “regimentos de cordel”.
Quanto à instrução militar, se ela foi incipiente no plano prático, considerando as características do terreno em Barcarès, a vetustez do armamento e as munições disponíveis, pura e simplesmente não existiu no plano teórico: três quartos dos voluntários estrangeiros não falavam francês e mal compreendiam a língua, o que tornava impossível a transmissão de conhecimentos, por mais básica que fosse, à generalidade dos recrutas.
É nestas condições que são treinados os voluntários que se oferecem para defender a França: os combatentes derrotados da Guerra Civil de Espanha, os judeus perseguidos na Europa do Leste, mas também todos os outros que nunca tinham feito a guerra, simples emigrantes, como Artur Pádua, em busca de uma vida melhor, alheios a motivações ideológicas.
A partir de 3 de Setembro de 1939, a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha entram no período da “guerra sentada”, como lhe chamaram os alemães. Há algumas escaramuças ao longo da fronteira, é verdade, mas nada de significativo. Na verdade, os inimigos limitam-se a olhar uns para os outros como galos de porcelana. Até que os exércitos de Hitler passam à ofensiva e invadem a Holanda, a Bélgica e o Norte da França, a 10 de Maio de 1940. É a blitzkrieg, a guerra-relâmpago preconizada pelo Führer.
O rolo compressor
As linhas francesas começam a desmoronar-se, umas atrás das outras. O estado-maior, que considerava inultrapassável a Linha Maginot, é apanhado de surpresa. Para reforçar as suas defesas envia para a frente de batalha várias divisões. Nelas estão integrados os dois RMVE já formados, o 21.º e o 22.º, compostos por três mil homens cada.
O 22.º, de Artur Pádua — mal equipado, mal treinado e mal comandado — recebe ordem para sair de Barcarès rumo à frente de combate, mil quilómetros a norte. Depois de uma viagem atribulada, de comboio, de camião e a pé, é integrado à pressa na 19.ª Divisão de Infantaria e enviado para as aldeias de Berny-en-Santerre e de Villers-Carbonnel. A 25 de Maio, o regimento recebe o seu baptismo de fogo. No dia seguinte sofre as primeiras de muitas baixas, repelido e esmagado pela artilharia e pelos tanques inimigos. De acordo com o Diário de Operações do 22.º RMVE, são feridos cinco oficiais e dez oficiais subalternos, bem como 56 soldados. Outros 130 são dados como desaparecidos, mortos ou feitos prisioneiros. O rolo compressor alemão, rumo a Paris, está em marcha e nada vai travá-lo.
Nos dias 5, 6 e 7 de Junho, o que resta do 22.º é atacado em força pelos alemães e cede posições umas atrás das outras, apesar da excepcional bravura dos voluntários, designadamente dos espanhóis. No sítio oficial da mairie de Marchélepot lê-se que “completamente cercado em Villers-Carbonnel, violentamente bombardeado pela artilharia e pela aviação, [o 22.º RMVE] resiste durante 48 horas a todos os ataques. Quando recua, os seus batalhões sucumbem uns atrás dos outros, já sem munições. Os voluntários acabam a combater corpo a corpo nas redondezas de Marchélepot-Misery, sob as ordens do major Paul Hermann.
No relato dos acontecimentos feito já no campo de prisioneiros para onde foi enviado depois de o regimento se ter rendido, Hermann conta que, “quando os alemães entraram em Mazancourt, ficaram surpreendidos com a fraqueza dos efectivos que durante tanto tempo os tinham mantido em xeque. O comandante alemão insistiu para que lhe indicassem onde estavam os outros homens, não acreditando que fossem tão poucos. Prestava assim homenagem ao valor do 2.º Batalhão (do 22.º)”.
Num balanço final, o 22.º RMVE perdeu 2199 homens, mortos ou feridos. Setecentos a 800 voluntários foram feitos prisioneiros pelos alemães entre 24 de Maio e 6 de Junho de 1940. Os sobreviventes renderam-se no dia 7 de Junho.
Numa apreciação global do valor dos voluntários estrangeiros durante a guerra, o general Albert Brothier escreve na sua obra Les Régiments de Marche des Volontaires Étrangers: “No fim, são concedidas 13 citações na Ordem do Exército às unidades de Infantaria. Desse magro total, quatro vão para regimentos estrangeiros. (…) Se nos lembrarmos de que quase um milhão de soldados de Infantaria foram mobilizados e entraram em combate, é impossível não ficar surpreendido ao verificar que menos de 20 mil voluntários estrangeiros arrebataram, sozinhos, um terço de todas as distinções atribuídas a toda a Infantaria…”
Coisas que não se contam
Foi num dos últimos combates do 22.º RMVE, a 5, 6 e 7 de Maio de 1940, que Artur Pádua foi feito prisioneiro. Enviado para um stalag, na Alemanha, só regressaria a casa e à sua aldeia francesa sete anos mais tarde. É um tempo surpreendente, se considerarmos que a Alemanha foi vencida em 1944, mas é o que ele sempre disse à sua família. A explicação é tão simples quanto tenebrosa: as autoridades francesas tinham alistado os voluntários estrangeiros pour la durée de la guerre — pelo período que durasse a guerra. Ora, a guerra entre a França e a Alemanha acabou a 22 de Junho de 1940, com o Armistício. Assim sendo, o Governo colaboracionista de Vichy, instalado na metade sul da França desde Maio desse ano até Agosto de 1944, achou por bem ignorá-los. Já não eram soldados franceses, protegidos pelas convenções internacionais, eram apenas homens vencidos que ele não reconhecia. E foi como homens vencidos que continuaram na Alemanha, em campos de trabalho. No caso de Artur Pádua, foi até 1946.
Quando regressou a Bogny-sur-Meuse, casou-se com Pierrette Sophie Becker. O casal teve dois filhos — Jacqueline e Alain. De acordo com o testemunho deles, o pai era “um homem reservado, extremamente gentil, respeitado por toda a gente na região e muito corajoso, mesmo na vida civil. Em 1949 teve um grave acidente de trabalho nas pedreiras de Venelles e amputaram-lhe uma perna. Mas logo que saiu do hospital e recuperou forças recomeçou a trabalhar e assim continuou até à reforma”.
Viria a falecer a 9 de Dezembro de 1989. Na opinião dos filhos, que afirmam estar felizes e orgulhosos pelo facto de alguém em Portugal se interessar pelo destino do pai, Artur Pádua era “tão reservado, modesto e discreto que não teria certamente aceitado falar sobre si e sobre as vicissitudes da guerra”.
Talvez sim, talvez não. Mas o certo é que, lá no fundo do coração, Artur Pádua continuava português ou, pelo menos, tinha saudades de Portugal. Ao lado da sua fotografia, tirada muitos anos depois do fim do conflito, tinha posto um galo de Barcelos que ainda hoje parece contemplar o seu sorriso bonacheirão de sexagenário. Nas festas interculturais de Bogny-sur-Meuse, gostava de ver a neta, Elisa Padna, vestida com um traje folclórico típico do Norte de Portugal.
Como tantos outros que viveram a guerra de perto, na frente de batalha, naquelas e noutras latitudes, ontem como hoje, Artur Pádua não falava desse passado tenebroso, feito de violência e de morte. Vivia sozinho com ele, num mundo onde mais ninguém entrava, talvez porque há coisas que foram vistas e vividas, mas não se contam. Sobretudo quando parece não interessarem a ninguém.
Trabalho feito com uma bolsa de investigação jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian e o apoio do município do Porto