A americanização do desporto
Mais cedo ou mais tarde era inevitável que no desporto ocorresse um fenómeno similar ao ocorrido em outras áreas culturais: a sua americanização. Traves mestras desta onda: espectáculo, comercialização e negócio.
Esta deriva está bem patente nas opções do Comité Olímpico Internacional relativamente aos jogos electrónicos e nas opções do Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028 quanto às modalidades de demonstração. Quem organiza olha para si, para a sustentabilidade do volume de negócios primordialmente assente nas receitas dos direitos televisivos, e esquece os outros, desvalorizando dimensões outrora cruciais para a inclusão de modalidades no Programa dos Jogos como a universalidade, o enraizamento nas comunidades locais, a segurança, acessibilidade e apelo ao público em geral.
Entretanto a Federação Rússa, para atenuar o problema de acesso as competições olímpicas, aposta em competições paralelas: Jogos Mundiais da Amizade, (23 fev-03 mar 2024), Jogos do Futuro (15-29 set 2024) e Jogos Brics (12-23 jun 2024).
Nos Jogos do Futuro, logo a seguir aos Jogos Olímpicos de Paris, haverá 45 milhões de euros, para distribuir pelos vencedores de 30 modalidades desportivas (20 das quais são iguais às "olímpicas" de Paris 2024), o que equivale a cerca de um milhão de euros para cada "medalha de ouro".
Esta comercialização que paira sobre o desporto não é distinta da que ocorre em outras áreas da cultura, das artes às letras. Com uma diferença: aí há denúncia e resistência o que não parece ocorrer no domínio do desporto, onde a generalidade das organizações internacionais de topo e os diferentes operadores se curvam aos ditames do negócio puro e duro.
A agravar esta situação a cultura woke, associada à vaga do neoliberalismo, acentuou este dilantetismo e progressivamente vem capturando os diferentes sectores sociais e políticos, independentemente da invocação de matrizes ideológicas distintas (esquerda/direita). O papel crescente das redes sociais na construção da agenda comunicacional e política agravou esta tendência.
Não deixa por isso de ser profundamente irónico, por um lado, defender o valor educativo do desporto carregado de dimensões úteis ao desenvolvimento social e simultaneamente submetê-lo às regras dos negócios e do lucro onde modalidades desportivas “não comercializáveis e rentáveis” tendem a desaparecer.
Quem assim não obedece e resiste o mínimo que recebe é de que está ultrapassado, parou no tempo e não compreende a sociedade actual. A ladainha nada tem de inovadora.
É precisamente por compreender esta deriva do mais agressivo capitalismo que há quem resista e quem continue a defender o desporto educativo e formativo, com lugar na escola e em outras instituições que prestam serviços à sociedade.
Muitas das declarações que conhecemos sobre o papel que o desporto deve assumir perante o agudizar de tensões, de intolerância, de individualismos e conflitos étnicos, sociais, políticos e religiosos que hoje vivemos, parecem esquecer que o desporto é um produto social e nessa medida também amplifica, reproduz e acentua - em palcos de milhões - fenómenos de intolerância, de corrupção, de ganância pelo lucro e até de criminalidade.
Quando não sabemos preservar o desporto, quando somos incapazes de cuidar dos seus valores e princípios fundamentais, quando não salvaguardarmos a sua integridade, quando não o colocamos ao serviço do desenvolvimento social e humano todo o valor formativo do desporto se perde e, nessa perda, está igualmente a sua desvalorização social.
Afirmá-lo é, nos tempos actuais, um pouco como chover no molhado, bem o sabemos, mas, enquanto pudermos, não deixaremos de denunciar estas tendências.