“Não acredito que um accionista minoritário fique com a TAP sem ter o controlo”

Miguel Mendes Pereira, advogado, avisa que “o Estado espanhol tem, actualmente, enorme preponderância na esmagadora maioria dos assuntos económicos portugueses”.

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Entre 2000 e meados de 2004, Miguel Mendes Pereira, hoje sócio do gabinete de advocacia DLA Piper, desempenhou cargos na Comissão Europeia, nomeadamente, como director da Direcção-Geral da Concorrência Europeia, e no Tribunal Geral da União Europeia, tendo depois assumido responsabilidades na Autoridade da Concorrência (AdC), antes de se dedicar a tempo inteiro à advocacia especializada em assuntos europeus e de concorrência. Sobre banca diz: “Devia ser a Caixa a dar o exemplo na questão das taxas de juros.”

Pode comentar o modo atabalhoado como a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, se posicionou no caso do conflito no Médio Oriente?
Antes de lhe responder sublinho o seguinte: Ursula von der Leyen conseguiu fazer algo, um desígnio prosseguido pelos vários presidentes da Comissão, de a transformar num verdadeiro governo europeu. Fê-lo no combate à pandemia e na reacção à guerra na Ucrânia, quando a CE surgiu na cena internacional a falar a uma só voz. E respondeu a uma questão muitos vezes colocada pela Casa Branca: “Quando queremos falar com a Europa, a quem devemos ligar?” Agora vou responder-lhe: embalada neste desígnio, von der Leyen foi a Telavive expressar o apoio inequívoco e incondicional a Israel.

E correu mal, porque não tinha mandato para o fazer?
Sobretudo o que fez foi indispor vários Estados-membros que, embora condenando o Hamas, não se predispõem a dar o apoio acrítico e incondicional a Israel. A iniciativa de Von der Leyen pode custar-lhe mesmo o segundo mandato.

Uma crítica que fazem a Von der Leyen é de querer impor um governo europeu, sem mandato popular.
De novo temos de distinguir dois aspectos: o da legitimidade da Comissão, que é indirecta, pois provém dos resultados das eleições para o Parlamento Europeu. E a sua legitimidade indirecta existe. A legitimidade de governos, como o de Portugal, emana dos parlamentos, o que não se passa com a França, onde o Presidente eleito tem funções executivas e goza de legitimidade directa. Qual é o problema? É que a Comissão não tem competência, e não falo em legitimidade, para actuar na esfera da política externa. E foi esta a posição em que Von der Leyen se colocou. E falhou.

No actual quadro geopolítico de grande instabilidade e incerteza, os desinvestimentos no sector da Defesa, por parte da generalidade dos países europeus, contribuíram para fragilizar o bloco em termos de segurança. A resposta de Bruxelas a este novo contexto foi permitir que se aplicassem verbas do Plano de Recuperação e Resiliência europeu nas indústrias de armamento, sejam elas públicas ou privadas, quebrando uma linha vermelha: não permitir auxílios de Estado a grupos nacionais estratégicos. Trata-se de uma inconsistência?
É verdade que a decisão não era expectável, mas, verificada a guerra na Ucrânia, e já agora a do Médio Oriente, não me espanta, na medida em que a indústria de armamento europeia tem uma importância que vai para além da económica, é, como diz, geopolítica e militar. E é um contributo para a segurança da Europa. Portanto, até acho normal que uma parte do pacote de auxílios de Estado que a União Europeia (UE) aprovou em termos de estímulos à economia, quer em resultado da pandemia, quer agora em resultado da inflação e, está claro, do factor guerra, possam ser canalizados para o armamento. Acredito que os apoios a esta indústria possam servir de incentivo para que os Estados-membros cumpram, finalmente, a meta de afectarem à Defesa 2% dos seus orçamentos.

A medida vai beneficiar países como a França, a Alemanha, a Polónia ou Espanha, que mantêm indústrias de Defesa. Não se vão acentuar as assimetrias regionais?
Esse é o ponto crucial dos programas de auxílio de Estado já aprovados ou ainda em discussão. É justamente o risco de fragmentação do mercado interno, ou seja, colocar-se em causa a sua coesão. Mas não é exclusivo dos apoios à indústria militar, também decorre da flexibilização das regras sobre auxílios de Estado criadas como salvaguarda da coesão do mercado interno. Ou seja, regras que visam impedir que países economicamente mais poderosos, com maior capacidade, possam financiar sem limites as suas empresas nacionais. Naturalmente, os países mais débeis têm mais dificuldade em fazê-lo.

Há hoje um risco real de os investimentos europeus na indústria de defesa, para protecção das economias ditas liberais, serem feitos em detrimento de recursos antes canalizados para o bem-estar das populações, saúde e educação, ou para a investigação científica?
O surgimento da pandemia fez com que o auxílio à economia se mostrasse necessário em praticamente todos os países. E dentro da UE estes apoios deram-se tanto nos países mais industrializados, como nos menos industrializados. Repito, estes apoios não são um exclusivo da indústria militar. O elemento novo que agora está em cima da mesa é um duplo desafio que a União Europeia tem de enfrentar: o interno, não cavar mais as assimetrias; o externo, acompanhar o que outros blocos económicos fizeram para fazer face à pandemia e à inflação.

Em 2022, os EUA aprovaram um programa chamado IRA, Inflation Reduction Act, de apoio maciço à economia, na ordem das centenas de milhares de milhões de dólares. Estamos numa economia globalizada, com os diferentes blocos a integrarem a Organização Mundial do Comércio, em que é suposto que a competição se processe no mesmo plano de igualdade, mas na prática o que se verifica é alguma deslealdade concorrencial, pois os respectivos governos nacionais facultam auxílios às suas empresas, o que a Europa não permite às suas próprias empresas. Mas agora, no seguimento do IRA [EUA], a UE teve necessidade de reagir com a flexibilização dos apoios.

Dado que serão os países mais ricos que mais vão beneficiar dos novos programas europeus, em desfavor dos menos industrializados…
É verdade que para países como Portugal, menos industrializados, gera um risco sério.

Nas últimas décadas, por omissão ou intenção dos decisores, verificou-se um sucessivo enfraquecimento do tecido industrial nacional, que levou ao desmantelamento das poucas unidades fabris existentes, entre elas as ligadas à área da Defesa, agora elegíveis para auxílios europeus.
Não temos indústria de defesa, nem outras. O que nos leva a outro ponto: a UE não se responsabiliza sobre as decisões que os países tomam e, portanto, a UE não se responsabiliza pelo facto de os agentes económicos portugueses terem optado por desmantelar as suas indústrias. Vou apenas mencionar o sector das pescas onde, há umas décadas, os agentes económicos portugueses optaram por desmantelar grande parte das frotas de que eram proprietários, quando em Espanha, na Galiza, se tomou a opção contrária. E hoje Espanha dispõe da maior frota pesqueira da Europa.

Há uns anos, num debate na RTP, no programa Prós e Contras, não me esqueço do que ouvi a um pequeno armador português, que tinha pedido para recuperar e expandir a sua frota, e foi desaconselhado pelas autoridades devido a regras europeias.
A UE não impõe decisões, cria efectivamente incentivos comportamentais, como aconteceu nos excedentes agrícolas e, seguramente, na pesca, pois os recursos da UE não chegam para tudo.

Nas pescas o incentivo aos armadores portugueses era ao abate de barcos, por contrapartida de compensações monetárias.
Não digo que não seja esse o caso. Há uma crítica que é razoável fazer às políticas públicas portuguesas, que é a de falta de desígnio estratégico. Num país que tem a linha de costa que tem, e uma zona marítima com a nossa extensão, o que se passou com o sector das pescas é paradigmático. Mas estas são opções mais políticas dos governos e dos agentes económicos que as tomam, e não tanto da UE. Para que alguns mecanismos de coesão funcionem são necessários mecanismos de incentivo ou desincentivo comportamental ao qual os agentes económicos aderem ou não, e que os países incentivam ou não. O tema é mais nacional do que europeu. Mas voltando atrás, em resultado do mau desempenho das economias europeias devido à pandemia e à inflação, quadro que se agravou repentinamente com a guerra na Ucrânia, justificaram-se as injecções de fundos que, e talvez com a excepção da reunificação da Alemanha, desde a criação das Comunidades são inéditas. E pela primeira vez antevejo um risco real de fragmentação do mercado interno e de quebra de coesão. E, sim, reconheço, que atingirá de forma mais acentuada países mais fracos como Portugal.

Resumindo: os países menos industrializados e mais endividados, como Portugal, serão os mais prejudicados pelas novas prioridades de investimento da UE?
Em 2022, a UE foi alertada por países como Portugal para o risco de fragmentação do mercado europeu e a proposta que a UE fez, acompanhando a da flexibilização dos auxílios de Estado, foi a criação de um fundo europeu que financiasse os Estados economicamente mais débeis para que pudessem também auxiliar as suas empresas.

E onde está esse instrumento?
Ainda não viu a luz do dia. A discussão sobre a possível flexibilização dos auxílios do Estado está pendente, entre outras coisas, da aprovação, ou não, deste mecanismo financeiro que seria uma contra-medida para compensar um pouco a clivagem que poderá resultar da flexibilização.

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Esteve a apoiar a Parpública na primeira privatização da TAP…
…mais do que apoiar, representei-a perante o Tribunal de Justiça da UE no processo movido pela Associação Peço a Palavra [liderada pelo cineasta António Pedro Vasconcelos], que procurou impedir a privatização da TAP [em 2015].

Em 2023, António Costa justificou a reprivatização da TAP, como sendo uma exigência de Bruxelas a título de contrapartida da recapitalização. Logo a seguir, o seu ex-ministro Pedro Nuno Santos veio desmenti-lo na SIC Notícias, dizendo que a medida não constava do acordo negociado no seu tempo com Bruxelas. Em resposta, António Costa explicou que se confundiu. Da sua experiência pode-se dizer que os governos usam as regras europeias como álibi narrativo para se justificarem perante os eleitores de decisões que contrariam as suas propostas eleitorais?
Infelizmente, tem sido assim. E tem-no sido também para decisões politicamente difíceis de implementar.

O Governo deu também o dito por não dito quando alegou que ia renacionalizar a TAP para não perder a maioria do capital, mas agora veio dizer que vendia até 100% do capital, sendo o mínimo de 51%.
Isso é indiscutível. Não acredito que um accionista minoritário esteja disposto a ficar com a TAP, sem ter o efectivo controlo.

Recentemente o Estado italiano vendeu 41% da ITA ao grupo alemão Lufthansa, ficando na esfera pública a restante parcela do capital…
A história da ITA passou pela insolvência da Alitalia para depois o Estado assumir uma posição que permitiu à ITA ser uma empresa mais ágil, com uma estrutura de custos mais leve. O que os especialistas dizem é que com a sua actual estrutura de custos é muito difícil à TAP ser concorrencial.

O Estado francês controla uma parcela do capital da Air France/KLM…
… uma posição minoritária, de 28,5%. No caso da TAP, do meu ponto de vista, o Estado não se revelou como um mero accionista estratégico e, como sempre, acabou por ser intervencionista. E é um círculo vicioso, porque os investidores privados acabam por não mostrar interesse em ter o Estado como parceiro estratégico, com medo que haja uma contaminação política.

O advogado Agostinho Miranda disse numa entrevista recente ao PÚBLICO que “o Novo Banco já custou aos contribuintes seis mil milhões, mas o seu futuro é a venda, com o lucro a ir para os accionistas privados. E temos ao lado, apesar dos problemas históricos, o banco público, a Caixa, a dar lucro e a pagar aos contribuintes”. A TAP é detida na totalidade pelo Estado e teve lucros nos primeiros nove meses do ano de 202,5 milhões de euros. Referindo-se ao seu bom desempenho, o ministro da tutela, João Galamba, comentou: “As expectativas para a privatizar são boas.”
Como contribuinte fico contente, como cidadão continuo a achar que ficando o Estado com uma maioria de capital público na TAP, isso vai potenciar uma interferência política que poderá ser mais ou menos episódica, dificilmente divergindo do que conhecemos.

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Paulo Pimenta

Também acha que a UE foi muito explícita a expressar-se contra os auxílios de Estado à TAP?
Duas questões: houve ou não necessidade de auxílio do Estado à TAP? De que modo foi concedido? Quanto à primeira questão, nem merece discussão, pois a TAP necessitava de auxílio público, à imagem de todas as suas concorrentes. E porquê? A actividade foi encerrada e os aviões estiveram imóveis, enquanto decorreu a pandemia. Não vejo controvérsia. Questão diferente, e mais polémica, é saber se a forma e o modo como foi concedido foi o mais adequado, quer do ponto de vista da gestão política, quer do contribuinte.

Sabe se o Governo, em 2020, avaliou outras alternativas para capitalizar a TAP que não a nacionalização?
Do que conheço, só avaliou, de forma séria uma via, a nacionalização. Não há registo público de que tenham sido estudadas alternativas para que o ónus para o contribuinte pudesse ser menor e que evitasse o catálogo de condições duríssimas impostas como contrapartida para a autorização da CE ao auxílio público. E a razão das condições duras é esta: quando uma empresa se torna pública sem saída do Estado predefinida, na prática está a beneficiar de uma garantia implícita do Estado, o que lhe dá uma vantagem adicional perante os seus financiadores e fornecedores que os privados não têm.

Conhece algum caso de entrada temporária do Estado no capital de um grande grupo?
Sim, o caso da banca que, em 2012, no quadro das crises [financeira e da dívida pública], e para evitar o risco sistémico, recebeu fundos de 7,25 mil milhões. Foram injecções com prazo de devolução ao Estado, logo ao contribuinte, com o Estado a entrar e a sair das empresas.

Os bancos queixaram-se muito da solução imposta pelo Governo de Pedro Passos Coelho.
É natural. Já nem todos se lembram, mas o mecanismo previsto destinava-se a incentivar o reembolso, pois os juros eram altos e crescentes ao longo do tempo. Ou seja: quanto mais tempo os bancos demorassem a pagar, mais elevados eram os juros. A ajuda teve como contrapartida um catálogo muito estrito de condições: proibição de compra de outras empresas, limites à remuneração da gestão, redução de custos – o que visava garantir a viabilidade futura dos bancos e a não necessidade de novos apoios. Foram nomeados representantes do Estado para o conselho de administração e de supervisão dos receptores dos fundos de modo a garantir o cumprimento das exigências. Ora, nada disto se verificou na TAP, o que levou às medidas duras impostas pela DGComp, que encarou a solução da recapitalização estatal como lesiva da concorrência.

Nunca esteve em cima da mesa a recapitalização da TAP através de instrumentos híbridos (Cocos)?
Não conheço nenhum registo público, nem discussão sobre isso. E, no caso da TAP, não só era possível, como era favorecida no quadro temporário sobre auxílios de Estado durante a pandemia por covid, em que a Comissão montou um programa com clara preferência sobre instrumentos de entrada temporária, os Cocos.

Foi o que fizeram os Estados com companhias aéreas de bandeira que, na mesma altura da TAP, receberam injecções públicas no quadro da pandemia. O Governo alemão na Lufthansa, e o francês na Air France/KLM deram auxílios que, na sua maioria ou totalidade, já foram devolvidos. O Estado alemão começou por negociar a recapitalização da Lufthansa com os privados, com propostas que estes recusaram por três vezes, e ao fim de nove meses injectou fundos na companhia, declarando desde logo que a entrada do Estado era temporária.

Encontra justificação para António Costa não ter optado por esta solução?
Acho que não o fez por razões essencialmente ideológicas. Assim que assumiu funções, em 2015, o Governo não escamoteou duas intenções: sob a bandeira da devolução de rendimentos e da reversão de decisões impostas pela troika ia desfazer muitas das medidas de Passos [Coelho], e, por outro lado, ia tomar decisões de cunho ideológico, sustentado no apoio parlamentar em que assentava a sua governação que era a garantia da sua continuidade. Foram proferidas, por parte de decisores, declarações agressivas que culminaram na saída dos privados da TAP. Ora, na TAP, o Governo prescindiu deste mecanismo temporário, bem como de uma supervisão apertada da gestão. E é por isso que o tema da TAP continua na agenda, mesmo depois do anuncia da privatização.

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O Estado vai recuperar os 3188 milhões de euros que meteu na TAP?
Tenho as minhas dúvidas.

Chegou a estar envolvido na recapitalização da CGD. Há declarações públicas de Passos Coelho, e da sua ministra das Finanças, de que o Estado não podia injectar fundos na Caixa, devido às regras europeias. O costume. Chegou António Costa e a CGD foi recapitalizada e o Estado já recebe dividendos [em 2022, recebeu 352 milhões de euros].
Reconheço que o caso da Caixa não correu mal. Do que tenho conhecimento deste dossier, o que a UE disse foi que que só era possível injectar fundos públicos em condições idênticas a um privado. E o Estado teria de mostrar uma expectativa de retorno sobre o capital investido equivalente ao que um investidor privado relativamente racional faria. Em segundo lugar, como prova desse facto, a CE exigiu demonstração de que houvessem privados dispostos a acompanhar o investimento do Estado. E, portanto, há uma emissão obrigacionista de 500 milhões de euros feita apela CGD e remunerada a 10,5%. Naturalmente, havendo uma emissão a 10,5% e havendo privados dispostos a subscrevê-la, então, sim, aceita a injecção de fundos. Não houve segredo nenhum na capitalização da CGD, a não ser a disponibilidade da Caixa em remunerar os privados a 10,5%.

Passos Coelho recusou a emissão para deixar a CGD numa situação tão frágil em que não lhe restava outra solução que não fosse a privatização, solução que, aliás, o próprio defendia.
Não tenho procuração de Passos Coelho, mas o que ele disse foi que as condições [remuneração a 10,5%] não eram razoáveis e, não estando ele disposto a aceitar, não se injectava o dinheiro na CGD. Também tenho claro que a autorização da CE para o Governo [de António Costa] injectar fundos na CGD foi dada a partir do momento em que se montou a emissão obrigacionista a 10,5%, com uma demonstração de grande interesse por parte de privados. Mas foi um custo muito elevado.

Para si teria sido preferível a privatização?
Não tenho a certeza de que fosse pior. A CGD tem tido uma gestão muito próxima de um privado, com aumento de comissões. Na questão das taxas de juro, e falo de forma empírica do que ouço, há uma pergunta legítima: havendo um banco público, porque é que ele não remunera de forma mais generosa os depósitos? Porque numa economia de mercado, quem der o primeiro passo leva os outros atrás. E estando a Caixa a operar no mercado, e não podendo abandonar essa linha sã de boa concorrência, enquanto banco público devia destacar-se dos seus concorrentes em momentos críticos, quando é preciso um norte e um vector. E devia ser a Caixa a dar o exemplo na questão das taxas de juros, o que não tem feito.

Para o mercado funcionar só devem existir empresas privadas…
Não penso assim. A concorrência não passa necessariamente por privatizar tudo. Não é preciso, por exemplo, privatizar a CP, que pode continuar pública – é preciso é criar concorrência. A ferrovia está liberalizada em muitos países da Europa, como em Espanha e Itália.

Em Portugal, já existe concorrência em certas linhas regionais.
Mas não existe nos principais eixos, de Lisboa-Porto e de Lisboa-Algarve. E tínhamos muito a ganhar. Ninguém quer ir de pouca-terra de Lisboa a Faro [o percurso no Alfa dura três horas], a capital do nosso principal destino turístico. Repare no drama dos que vivem nas periferias de Lisboa e Porto, que se confrontam com greves, atrasos, falta de carruagens nas linhas do Norte, de Lisboa e de Sintra. Não há dinheiro para recuperar as danificadas. Que raio de serviço público é este? Defendo que se deve primeiro investir na CP para ter um bom serviço e só depois abrir as linhas à concorrência. Não se deve deteriorar os serviços públicos, para os privatizar a seguir.

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Paulo Pimenta

Já se fala que António Costa e Fernando Medina querem entregar as principais linhas da ferrovia nacional à Renfe espanhola. Qual é sentido estratégico da solução?
Há empresas nacionais com vontade e capacidade de investir na ferrovia. É preciso que lhes dêem condições, nomeadamente, em termos de licenciamentos. Se a Renfe entrar efectivamente em Portugal, as nossas empresas, públicas ou privadas, irão enfrentar uma duríssima concorrência proveniente não só da Renfe, mas do próprio Estado espanhol que está por detrás dela. O Estado espanhol tem, actualmente, enorme preponderância na esmagadora maioria dos assuntos económicos portugueses.

Concorda com os que atribuem a crescente influência espanhola no país a um sinal das agendas ocultas que movem alguns dos nossos decisores?
Respondo assim: não tenho problema com a circulação de capital, nenhum mesmo. Mas já tenho com a falta de desígnio estratégico dos nossos governantes. Portugal não o tem tido, nem na UE, nem no mundo. Mas Espanha tem. E é por isso que se sente a sua influência em Portugal de forma cada vez mais acentuada. Mas não critico Espanha por isso. Ainda recentemente, fui surpreendido pela vice-primeira-ministra espanhola, Nadia Calviño, que, ao intervir no think tank Bruegel, disse que Espanha era a ponte entre a Europa, a América do Sul e África.

O Brasil é de longe o maior país da América Latina, embora Espanha tenha pontes nos restantes. Tem ideia de que Espanha tenha um grande historial de presença em África?
[risos] Pois!

Tendo trabalhado na DGComp (Direção-Geral de Concorrência da Comissão Europeia), que comentário lhe merece a crítica de que esta instituição é forte a lidar com os países fracos, mas fraca com os países fortes.
A DGComp não é a má da fita. E tenho dificuldade em generalizar, pois cada caso é um caso. Há seguramente casos desses. E não podemos ignorar que numa instituição como a Comissão, onde se forma uma vontade colectiva através de votos, seguramente que um país com maior dimensão, maior população e mais riqueza tem mais poder do que um de menor dimensão e com menos população e mais pobre. Pode doer dizê-lo, mas é a lei da vida, e temos de conviver com isso. Idealmente, deveria ser justa com todos. Mas também acho que não existe uma política cega. Existe apoio aos países mais débeis, via fundos de coesão. A metáfora do filho mais forte e do filho mais fraco aplica-se na UE e tem um número: muitos milhares de milhões de euros que beneficiaram os países mais débeis – Portugal, Grécia, Espanha, Malta e depois os países do Leste. Verbas dadas pelos países mais ricos. E isto é política de coesão.

Coisa distinta é a de concorrência, da DGComp, onde a lógica que prevalece é a da economia de mercado. Uma empresa em dificuldade deve sair do mercado para dar lugar a outra eficiente, pois de outra forma os prejudicados são os consumidores. É uma regra sem excepções? Não é. Os governos nacionais podem auxiliar uma empresa em dificuldades, desde que não viciem de forma irremediável a concorrência. Ambas existem em paralelo, coexistem, mas nem sempre se cruzam. Na UE, não existe uma economia de mercado cega, sem misericórdia. Existem os fundos estruturais e de coesão.

Uma das críticas que se faz à DGComp é a de que é dominada pelos interesses dos grandes países.
A DGComp está sujeita a pressões de muitos lados. É verdade que, no nosso caso, e ao contrário dos espanhóis, que ocupam vários lugares relevantes, historicamente não existem portugueses em lugares de destaque na DGComp. E, quando lhe chegam casos complicados, e sabendo que está sujeita a pressões de vários lados e é objecto de um elevado escrutínio, a DGComp cede para um lado e é acusada pelo outro.

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