Eric Chambers, 41 anos, não se considera um nómada digital — até porque não gosta “de viajar de país em país” —, mas mudou-se de Nova Iorque (EUA) para Guimarães graças ao visto para trabalhadores remotos criado a 30 de Outubro de 2022. É um dos “cerca de 2600” cidadãos que contribuem para o número de vistos emitidos neste primeiro ano.
De acordo com os dados enviados ao P3 pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), “as nacionalidades com mais vistos emitidos foram, por esta ordem, cidadãos dos Estados Unidos da América, Brasil e do Reino Unido”.
Esta nova tipologia de visto, que alterou a lei de estrangeiros, foi criada precisamente a pensar nos cidadãos de países fora da União Europeia e do Espaço Económico Europeu que querem trabalhar remotamente a partir de Portugal.
A viver em Guimarães, Eric desloca-se até ao Porto alguns dias por semana para trabalhar remotamente como freelancer para diferentes empresas europeias e norte-americanas. Apesar de “adorar a experiência cultural, a natureza e a história” de Guimarães, é na baixa portuense que consegue “socializar mais facilmente com outros trabalhadores remotos”. O consultor tecnológico podia estar em qualquer parte do mundo, mas escolheu Portugal por motivações financeiras e emocionais.
“Há uma razão muito prática relacionada com as finanças”, começa por apontar. O protocolo entre o Governo português e os EUA para evitar a dupla tributação e a evasão fiscal torna a situação destes nómadas “mais favorável”, descreve, comparando com outros países europeus.
Mas a ligação a Portugal vai além da lógica financeira. “Uma das minhas amigas mais próximas é de Lamego”, justifica. A experiência do programa Erasmus Mundus em Itália, Suécia e Reino Unido, aquando do mestrado em Gestão, permitiu-lhe criar laços com vários portugueses. Dos laços surgiram as viagens. “Já estive em Portugal cinco vezes [e] também tenho uma ligação à língua portuguesa”, confidencia, já que esteve dois anos a trabalhar no Brasil.
Aterrou no Porto em Maio deste ano, mas o processo com o visto começou em 2021 “em plena covid-19”, lembra. Eric começou por pedir o visto D7, que permite a residência em Portugal a cidadãos de países fora do espaço europeu desde que tenham um rendimento estável fora do país. “Vi o pedido rejeitado a primeira vez, depois candidatei-me novamente. Quando o consulado recebeu o requerimento, disseram-me que tinha sido criado o novo visto” para trabalhadores remotos. "Foi uma longa jornada”, conta.
Quanto ao procedimento burocrático, Eric considera que é “muito complexo” e “pode ser difícil para jovens freelancers” pela exigência de um rendimento estável. Para requerer o novo visto, os trabalhadores têm de apresentar nos postos consulares um “documento que ateste a residência fiscal” e provar que tiveram, nos últimos três meses, rendimentos “de valor mínimo equivalente a quatro remunerações mínimas mensais”. Falamos de 3040 euros (brutos), considerando o salário mínimo nacional em 2023.
Estas regras aplicam-se tanto a freelancers como a trabalhadores remotos que trabalhem para uma só empresa. Neste último caso, podem apresentar como prova o contrato de trabalho ou uma declaração do empregador a comprovar o vínculo laboral.
“Levo muito a sério a ideia de ficar em Portugal”
O visto tem a duração de um ano, mas Eric diz que leva “muito a sério” a ideia de ficar em Portugal e imagina-se a viver cá “talvez dez anos ou mais”.
Esta não parece ser, no entanto, a opção mais comum dos nómadas digitais. Geralmente, “não têm interesse em migrar para Portugal” ou para os países onde viajam em trabalho, diz Gonçalo Hall, presidente da Digital Nomads Association (DNA) Portugal.
Criada em Agosto de 2022 para “trabalhar com o Governo português, municípios e parceiros” na preparação do país para receber nómadas digitais, a associação surgiu depois de um projecto-piloto bem-sucedido na ilha da Madeira, que começou em 2020.
“[Através do projecto Digital Nomad Madeira Islands,] percebemos o impacto positivo que, quando bem geridos, estes projectos de atracção de nómadas podem ter para a economia e para as sociedades na generalidade.” A aposta da associação é “combater a sazonalidade” do turismo e “descentralizar as comunidades de nómadas das grandes cidades, principalmente Lisboa ou Porto”.
Três anos depois da criação de comunidades de nómadas em diferentes pontos da ilha, os números do projecto “podem servir de referência” ao panorama nacional. Dizem-nos que os nómadas que chegam à Madeira têm “idade média de 33 anos”, “ficam dois a três meses”, “a maioria vem da Europa” e “trabalham em tecnologia”.
Gonçalo acrescenta ainda que, nas estadias de curta duração, “a maioria dos nómadas usa as infra-estruturas turísticas” e, por isso, “prefere viajar na época baixa ou média”.
Para tentar perceber se os números do projecto madeirense podem, de facto, caracterizar os 2600 nómadas que chegaram ao resto do país, o P3 pediu ao MNE dados adicionais, mas o Governo não está a fazer esse tipo de recolha de dados. Também perguntou se o balanço do primeiro ano desde a criação do novo visto correspondia às expectativas iniciais do executivo, mas não obteve resposta em tempo útil.
Voltemos ao testemunho de Eric Chambers. Quando decidiu ficar em Guimarães, quis habituar-se “ao estilo de vida das pessoas da região”. Nestes cinco meses já são muitos os hábitos adoptados. Apesar de viver em Guimarães, usa o comboio para viajar até ao centro do Porto às terças e quintas-feiras, dias em que trabalha no espaço de coworking Porto i/o Downtown. Às quartas-feiras é dia de apanhar o autocarro para Braga. Também faz CrossFit em Guimarães. Na box, é o único estrangeiro” e “tudo está em português”, descreve.
O CrossFit, modalidade conhecida pelo espírito de comunidade, parece ajudar a estreitar laços. Também vinda dos EUA, mas natural de Phoenix (Arizona), uma jovem de 24 anos que pediu o novo visto para trabalhar remotamente a partir do Porto, encontrou no Squad, um ginásio com aulas de cross, “uma segunda casa”.
Depois de um primeiro emprego numa agência de relações públicas em Chicago, ainda durante a pandemia e a trabalhar a maior parte do tempo remotamente, sentia-se “muito sozinha” e queria voltar a “sentir conexão humana”.
Foi com estas ideias em mente que a agora escritora freelancer decidiu pedir o visto para nómadas digitais. Ao contrário de Eric, diz que o processo burocrático foi simples – depois de submetido o pedido em Novembro de 2022, a resposta chegou em seis semanas. Neste caso, contou com a ajuda da consultora Prismaat SA em Braga. “Era a primeira vez que fazia algo deste género”, explica.
Faltam sete meses para terminar a autorização de residência concedida com o visto e ainda não tem planos para o futuro. “Queria passar por esta experiência primeiro antes de pensar sequer na possibilidade de viver sozinha em Portugal ou na Europa”, relata. Para já, os seus dias continuam a dividir-se entre o CrossFit e o trabalho.
“Estou rodeada de pessoas acolhedoras e simpáticas”, diz, numa referência aos colegas com quem passa a hora de almoço, no coworking. Em Chicago, quando ia ao escritório, “ninguém fazia sequer uma pausa para almoçar” – “não tinha qualquer ligação com colegas com quem trabalhei durante dois anos”, compara.
“Queremos viajar para todo o mundo a partir daqui”
Omaira Sabqi, 28 anos, e Zeeshan Sabqi, 32 anos, chegaram ao Funchal, na ilha da Madeira, a 17 de Junho. Naturais do Paquistão, pediram o visto para nómadas digitais em Dezembro — ela já trabalhava remotamente numa empresa online de gestão de eventos; ele, analista de dados numa empresa de telecomunicações sediada nos EUA, decidiu experimentar o trabalho remoto.
“Achámos que a Madeira era o sítio ideal por ser muito central, ter uma enorme comunidade de nómadas digitais e Internet muito rápida”, começa por enumerar Zeeshan. E acrescenta: “Uma vez que está cheia de pessoas com o mesmo espírito que nós, pensámos que podia ser um bom sítio para começar.”
Quatro meses depois, já têm visto de residência. “Sinto-me um imigrante completamente estabelecido no país”, conta Zeeshan. Apesar de o visto de nómadas digitais ter evoluído para o visto de residência, a ideia do casal é continuar a viajar, tirando proveito da localização geográfica.
“Vemos a Madeira como a nossa base ou sede. A partir daqui, queremos viajar para outros sítios, estar lá um mês ou dois meses e voltar a casa. É aqui que vivemos, mas a partir daqui podemos viajar para todo o mundo”, explica o analista de dados.
Em pleno Funchal, o dia-a-dia do casal faz-se principalmente no exterior. Acordam por volta das 8h para uma caminhada matinal, porque querem “tirar proveito da proximidade do mar” e “das zonas estabelecidas para caminhar, como os parques”. Segue-se o pequeno-almoço num café local onde ficam “a trabalhar duas a três horas”. Ao almoço encontram-se com outros nómadas e depois retomam o trabalho até ao fim do dia.
Criar habitação acessível “é diferente de expulsar os nómadas digitais”
O balanço que o casal faz deste novo visto é muito positivo — veio “simplificar” a circulação dos nómadas digitais e, no caso particular da Madeira, Zeeshan e Omaira sentem que o governo regional “dá bastante apoio” ao longo do processo. “Até fica pré-agendada uma reunião dois ou três meses depois da validação do visto”, exemplifica.
Sobre o impacto dos nómadas digitais na comunidade Zeeshan reconhece que em cidades como Lisboa, “onde a gentrificação ganha outras proporções, pode haver problemas”. No entanto, com base na experiência que tem na Madeira, diz que a forma como as pessoas se relacionam faz a diferença. “No continente estão a tentar mudar Portugal, aqui não, estamos a tentar estabelecer-nos com a comunidade”, afirma.
Para Eric Chambers, os problemas que afectam as cidades de alta densidade como Porto ou Lisboa não estão relacionados com os nómadas digitais. “É pura economia”, diz, numa reflexão sobre a subida dos preços da habitação. “O principal problema é a falta de habitação acessível” e, por isso, “fazer com que as casas sejam acessíveis para os locais é diferente de expulsar os nómadas digitais”, argumenta.
Uma experiência de trabalho como consultor em Nova Iorque (EUA) trouxe-lhe uma “opinião forte” sobre este assunto. Sugere que sejam adoptadas por cá medidas semelhantes às de Nova Iorque: que o Governo regule os valores máximos que os senhorios podem cobrar pelo arrendamento em zonas específicas e que mais edifícios antigos sejam reabilitados e transformados em habitação acessível, por exemplo.
“Criar legislação para a habitação acessível devia ser uma prioridade de todas as cidades”, sublinha. Ainda assim, o consultor tecnológico lembra que, “caso se acredite que os nómadas digitais contribuem para a subida do preço da habitação”, há sempre a possibilidade “de reduzir o número de vistos emitidos”.