João Paulo Correia: “Publicidade de casas de apostas no futebol merece reflexão profunda”
Secretário de Estado do Desporto vê no brilharete da selecção de râguebi “uma oportunidade de ouro” para a modalidade e desvaloriza os cortes ao desporto anunciados pela Santa Casa.
Na segunda parte de uma entrevista que teve a organização do Mundial 2030 como tema central, João Paulo Correia abordou a prestação da selecção portuguesa de râguebi no Mundial, que encara como uma "oportunidade de ouro" para o salto em frente da modalidade. E abordou também os apoios da Santa Casa, assim como o peso desmesurado das casas de apostas nos patrocínios do futebol profissional.
Portugal concluiu recentemente, com inegável sucesso, a prestação no Campeonato do Mundo de râguebi. Foi amplamente elogiado pela qualidade do seu râguebi e por conseguir fazer muito com pouco. Estão criadas as condições para capitalizar esta onda de entusiasmo em torno da modalidade?
Sim, quando uma modalidade como o râguebi atinge a proeza não só de se qualificar para o Mundial, mas também vencer um jogo no Mundial contra uma das selecções que historicamente é das mais fortes no râguebi mundial, mostra que a modalidade evoluiu bastante e que há um potencial de crescimento. Está muito nas mãos da federação aproveitar esse potencial e essa presença que os resultados da selecção ainda têm na opinião pública e na consciência dos mais jovens que procuram a sua modalidade. Portugal tem hoje um número recorde de praticantes federados. Temos cerca de 710 mil quando, em 2019, no último ano pré-pandémico, o país tinha 690 mil. A pandemia atingiu muito o desporto e em 2023 os números dizem-nos que há um novo impulso no número de praticantes federados. Aproveitando esta onda de crescimento do desporto federado, o râguebi tem aqui uma oportunidade de ouro para crescer ainda mais.
Mesmo em contextos de euforia, que muitas vezes é circunstancial, continua a ser difícil encontrar apoios junto da iniciativa privada para modalidades que não o futebol. Atendendo à expressão do financiamento público e a todas as dificuldades logísticas que cada modalidade enfrenta, o cenário é de fragilidade. Isto é o espelho do interesse dos adeptos, que só têm olhos para o futebol, ou é também o espelho do interesse do Governo?
Importa dizer que em 2022 o Governo conseguiu reforçar as verbas para as federações desportivas em 6,5%, em 2023 o montante global subiu 4% face a 2022. O Governo tem mantido uma trajectória de aumento de apoios, do financiamento público ao sistema desportivo nacional. E para 2023, ano de Jogos Olímpicos e Paralímpicos, o Governo está a investir 32 milhões de euros através do COP e do CPP. Todos os montantes envolvidos na preparação e qualificação dos atletas olímpicos e paralímpicos são assegurados pelo Governo através do IPDJ nos contratos que celebrou com o COP e CPP. Estamos a falar de 22 milhões de euros para o COP, nove para o CPP. Estamos a falar de verbas históricas. Os atletas e treinadores não eram aumentados desde 2009 e essas verbas foram agora aumentadas em cerca de 20%. Este aumento também permite investir mais em provas e estágios internacionais e também preparar os Jogos Olímpicos de 2028. Parte deste valor é para investir numa ovem geração que, não estando em Paris, tem todas as condições para estar em Los Angeles em 2028. Posso também adiantar que haverá um novo contrato-programa de preparação e qualificação para os atletas surdolímpicos, que terá uma linha plurianual e que irá equiparar a bolsa destes atletas às dos atletas paralímpicos e olímpicos. O debate estrutural sobre o financiamento público ao desporto conduz-nos a outra conclusão, que é a de que o desporto reivindica mais apoio. É cultural. Se olhar para os outros países da União Europeia e estudar o grau de dependência do Estado por parte de clubes e federações irá ver Portugal no lote dos países em que as organizações nacionais do desporto e os clubes mais dependem do apoio público.
O anúncio da provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) de um corte assinalável nos apoios ao desporto foi mitigado com um acordo que, já em 2024, prevê um esforço financeiro do Estado. Isto significa que, a partir do próximo ano, a SCML se desobrigará de contribuir para um sector do qual continua a extrair milhões de euros em receitas?
Levantou-se uma grande polémica acerca do anúncio da redução dos apoios. Eu utilizaria a palavra redução porque a SCML mantém o apoio ao desporto em 2023, para 2024 os contratos que não forem renovados serão assegurados pelo Governo. Estamos a falar de verbas, em algumas federações, muito reduzidas, quase inexpressivas. Nunca uma federação desportiva informou o Governo dos apoios que recebeu da Santa Casa. Os contratos eram sigilosos. Quando a SCML faz o anúncio, o Governo, no mesmo dia, criticou a decisão da SCML, mas, ao mesmo tempo, pediu uma reunião com a Sra. Provedora e a SCML agiu de forma altamente colaborativa. Estamos a falar de verbas muito reduzidas. Em algumas federações estamos a falar de poucos milhares de euros em orçamentos de milhões, que levaram a declarações muito exacerbadas face ao anúncio da SCML. Nenhum daqueles apoios que poderá não ser renovado em 2024 coloca em causa o funcionamento de qualquer federação desportiva. Mas para que não reste nenhuma dúvida, o Governo substituir-se-á à SCML em 2024.
Têm sido frequentes as queixas de vários agentes desportivos, desde presidente de federações aos líderes do movimento olímpico, de um subfinanciamento crónico no desporto. Que tipo de “correcções” será possível fazer com a dotação prevista para o sector no próximo OE? Ainda recentemente o presidente da Federação de Andebol escrevia que “o desporto dá muito mais ao país do que os governos têm dado ao desporto”. Partilha desta visão?
Falemos de factos. Como disse, em 2022 o Governo reforçou as verbas para o desporto em 6,5%. Em 2023, o aumento foi de 4%. Sabe-se que as verbas para o desporto inscritas no OE para 2024 sobem 12,5% face a 2023. Nem todos os sectores têm aumentos de 12,5%. Não está aqui todo o apoio ao desporto neste número. O que está a acontecer são as chamadas dores de crescimento. O desporto português está a viver um bom momento de forma: nós vemos títulos internacionais em modalidades individuais, como a patinagem, a ginástica e a natação, e isto não acontece por acaso. As Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola (UAARE), que podem custar no próximo ano um milhão de euros, porque já funcionam desde 2016 no ensino obrigatório e vão funcionar, no próximo ano lectivo, no ensino superior, através de projectos-piloto… Estão aqui 1400 alunos-atletas, das selecções jovens, que frequentam estas unidades em 55 modalidades. A política antidopagem custa quase um milhão de euros. A prevenção e combate à violência no desporto também custa perto de um milhão de euros, todos os anos. Isto também é investimento no desporto. O desporto escolar é um investimento que pode chegar aos 40 milhões de euros por ano. Isto para além dos 50 milhões de euros que são os títulos das notícias como a verba inscrita para o desporto no Orçamento de Estado.
Não teme que a “actualização” do programa Regressar, que reduz drasticamente os benefícios fiscais para trabalhadores que já tenham tido domicílio fiscal em Portugal e pretendam voltar a trabalhar no país, possa provocar um decréscimo da qualidade dos desportistas e, por acréscimo, da qualidade das competições? Ainda há espaço para um recuo do governo em sede de OE?
Essa decisão é uma decisão que não foi tomada para atingir o sector A ou sector B. Há uma decisão de excluir do programa Regressar rendimentos acima de x, estamos a falar de rendimentos anuais de muitas centenas de milhares de euros. É um programa que tem contribuído para o regresso de muitos jovens que emigraram no tempo da troika e que hoje olham para o país com mais confiança. Esta medida foi tomada com a lógica que o Governo anunciou, agora veremos aquilo que é o debate na especialidade do orçamento.
A esmagadora maioria dos clubes da I Liga é patrocinada por casas de apostas. Esta dependência preocupa-o? O governo tenciona legislar nesta matéria?
Itália e Espanha já puxaram o travão de mão, a Inglaterra já anunciou também essa intenção, alguns países estão a adoptar medidas dissuasoras. Sabemos que o peso da I Liga portuguesa naquilo que é a sua dependência em relação à publicidade das casas de apostas é de 72%, não podemos fingir que isto não é um assunto que merece uma reflexão profunda. Essa reflexão tem de ser feita porque não podemos decidir prejudicando fortemente um sector, mas tem de envolver outras áreas que não só o desporto e temos de ter a certeza do impacto que possa vir a ter num sector da nossa actividade económica, que gera milhares de postos de trabalho, paga contribuições para a Segurança Social, paga impostos... Não podemos perder de vista que é um sector que tem aí, no apoio de empresas privadas, uma grande fonte de receita.
Já foi presidente de junta de freguesia, deputado, agora exerce as funções de Secretário de Estado e nos últimos dias mostrou abertura para se candidatar à concelhia do PS de Gaia. Era este o caminho de ascensão na política que idealizava?
Não vou responder à pergunta. Estou aqui a ser entrevista na qualidade de SEJD e não queria sair desta esfera.
Mas ser presidente da CM Gaia é um desígnio incontornável?
Naturalmente, não farei qualquer comentário.