O estudante de doutoramento português existe?

O meu trabalho é ser estudante de doutoramento. Mas infelizmente, em Portugal uma vaga de doutoramento e o seu respectivo financiamento são componentes distintas.

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"Então, como vai o doutoramento que eu ando a pagar, hã?". "Vai mas é trabalhar. Vai fazer algo de útil para a sociedade!". A última frase faz referência a um sketch recorrente de Os Contemporâneos; infelizmente, a outra é o tipo de comentários com que me deparo frequentemente vindos de amigos e conhecidos, ainda que um pouco caricaturada, é certo.

Não compreendendo totalmente a razão pela qual muitos sentem a necessidade de fazer este tipo de comentários, mas creio que muitas vezes são motivados pela incompreensão sobre o que faz um aluno de doutoramento.

É um estudante ou um trabalhador? Estuda ou trabalha? Como diria Miguel Esteves Cardoso no seu artigo Papá, o croissant português existe? (ao qual o título deste artigo faz referência), a resposta a estas perguntas é precisamente "sim, é isso".

A primeira vertente está, desde logo, presente na denominação "estudante de doutoramento". Mas um estudante de doutoramento é, regra geral, um estudante por escolha e autodidacta por definição.

Adquirimos conhecimento através de artigos científicos, sempre de uma forma crítica, e não assistindo a aulas. Um doutoramento não é um mestrado 2.0. Depois de ter compreendido a fronteira do conhecimento numa determinada área, o objectivo torna-se então expandi-la, ainda que milimetricamente. Isso é precisamente o trabalho de um estudante de doutoramento.

A segunda vertente é então a do trabalhador, embora não no sentido mais tradicional da palavra. Conceber e trilhar o caminho para lá da fronteira do conhecimento não é trivial e muitas vezes este trabalho leva a solidão ou intrusão em aspectos pessoais: é bastante difícil estabelecer limites e desligar completamente.

Por fim, um estudante de doutoramento não tem chefes, mas sim orientadores. Idealmente, um orientador deve guiar-nos durante a totalidade do percurso, mas somos nós quem eventualmente tem de ultrapassar o seu nível de conhecimento. Caso esta relação se revele negativa, torna-se extremamente nociva para o aluno, podendo dar azo a sérios problemas de saúde mental, incluindo baixa auto-estima e síndrome do impostor.

O meu trabalho é ser estudante de doutoramento. Mas infelizmente, em Portugal uma vaga de doutoramento e o seu respectivo financiamento são componentes distintas. Mantendo a analogia do trabalhador, é como se nos candidatássemos a um posto de trabalho e a este não estivesse associado garantidamente um salário, o seu direito mais básico.

Sendo as propinas de um doutoramento bastante elevadas, torna-se impraticável fazê-lo sem financiamento. No mínimo, a cada vaga de doutoramento deveria estar directamente associada uma bolsa como, de resto, é norma em outros países europeus (Alemanha, França, Suécia, Dinamarca) devendo, claro, existir mecanismos de supervisão associados.

São boas notícias que o investimento português em ciência tenha atingido novamente um máximo histórico (ainda assim apenas 1,73% do PIB em 2022) e que o número de bolseiros de doutoramento tenha uma tendência positiva (embora entre 2022 e 2023 o número de vagas não tenha crescido).

No entanto, esse investimento ainda está aquém da média europeia (2,3% do PIB) e cresce a um ritmo manifestamente insuficiente de acordo com a meta do governo de atingir os 3% do PIB até 2030. Segundo Miguel Viegas da Fenprof, existem cerca de quatro mil investigadores em situação precária em todo o país, o que corresponde a cerca de 90% destes profissionais. Onde estão então os nossos grandes "patrões"?

Um estudante de doutoramento — mais tarde doutorado — tem muitas valências a oferecer a um país cuja capacidade de planeamento parece ser uma maleita culturalmente crónica. Urge falarmos sobre a importância da nossa ciência para o futuro do nosso país e os estudantes de doutoramento são as suas sementes.

Como tal, devemos regá-las e cuidar delas, não espezinhá-las. Não podemos deixar que os cientistas façam investigação de qualidade apenas "fazendo das tripas coração". É impreterível mudarmos a narrativa. Porque, da minha parte, acredito genuinamente que o que estou a fazer é "trabalho" e algo extremamente "útil para a sociedade". Apenas gostava que a sociedade também acreditasse nisso.

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