A guerra sem Guterres
A UE deveria estar ao lado de Guterres, afirmando que Israel, quando procura destituir o secretário-geral da ONU pelas suas palavras certeiras e corajosas, está a ultrapassar outra linha vermelha.
“É importante reconhecer também que os ataques do Hamas não aconteceram num vácuo. O povo palestiniano foi submetido a 56 anos de ocupação sufocante. Viram as suas terras progressivamente devoradas por colonatos e assolados pela violência. A sua economia está asfixiada, a sua população deslocada e as suas casas demolidas. As suas esperanças para a sua situação têm vindo a desaparecer. Mas as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas, e esses terríveis ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano.”
Este é o excerto decisivo que levou o embaixador israelita nas Nações Unidas e o seu país a exigirem a demissão imediata de António Guterres. De forma naturalmente deturpada, acusaram-no ainda de ter demonstrado compaixão para com o grupo terrorista. Acontece que o secretário-geral das Nações Unidas reforçou de forma clara nesta declaração que nada justificava os ataques do Hamas.
Saber separar o ataque hediondo, cobarde e sem perdão do dia 7 de outubro de quem, em resposta, bombardeia indiscriminadamente a Faixa de Gaza há 16 dias, ininterruptamente, é crucial. O direito de desmantelar e destruir a organização terrorista do Hamas é mais do que legítimo, mas não pode ser exercido à custa de tantas vidas inocentes, sobretudo quando não se vislumbra um enfraquecimento da organização terrorista por esta via nem mais libertações de reféns. Não são só as Nações Unidas e o papel humanitário da mesma que Guterres vem exigir que sejam, naturalmente, tidos em conta. Ao considerar, isoladamente, os ataques do Hamas inadmissíveis, prejudiciais para o próprio povo palestiniano, explica que existe todo um contexto anterior aos mesmos que não pode ser ignorado.
Existe todo um contexto que importa.
Bem sei que nestes dias em que assistimos, por um lado, ao ressurgimento de um sinistro e perigoso antissemitismo na Europa e, por outro, a uma relativização dos ataques do Hamas, é difícil afirmar as nuances da realidade sem que elas acabem por servir como escudo aos polarizadores de um e do outro extremo.
Para isso, basta ver como reagem todos os que continuam a ignorar que o governo extremista de Netanyahu é, há muito, um dos grandes catalisadores da desumanização e um dos obstáculos à paz na região. Em nome da sua sobrevivência política, ele e os seus governos fizeram tudo o que puderam para tornar o Estado Palestiniano inviável. A oposição israelita, que tanto terreno ganhou nos últimos meses, afirmava-se como a única solução para este conflito de décadas.
Um conflito que se intensificou pelo exercício continuado de políticas pró-fascistas da extrema-direita no poder em Israel. Sempre à margem da tal maioria de judeus que sabem que só com o respeito de ambos os lados haverá paz.
Um entendimento que as lideranças europeias não têm expressado de forma suficientemente audível. Nos últimos anos não fizeram o necessário para obrigar o governo israelita a aceitar a solução de dois Estados e, no day after do ataque a Israel a Gaza não soube segurar nas mãos duas ideias que nem opostas são: condenar em toda a linha o terrível ataque do Hamas, reconhecendo o direito de resposta de Israel em conformidade com os limites do direito internacional; colocar o contexto e a situação insustentável em que a Palestina e os palestinianos se encontram há um tempo sem fim em cima da mesa.
Deviam tê-lo feito não só em nome dos valores que a União Europeia apregoa, mas também em nome da sua própria segurança e por este ser o único caminho viável para sair deste conflito.
Muitos preferiam um Guterres de discurso vazio e que a ONU mantivesse a insignificância, que perdura há décadas, da sua palavra sobre estas questões. Algo contra o qual Guterres tem lutado, e nas situações mais difíceis. A Europa deveria estar ao seu lado, afirmando que Israel, quando, com a sua política de cancelamentos, procura destituir o secretário-geral da ONU pelas suas palavras certeiras e corajosas, está a ultrapassar outra linha vermelha.
Naturalmente que nada disto é expectável numa União Europeia que se tem mostrado completamente inoperante e politicamente errática neste conflito. Resta o que resta: a noção de que a guerra não contaria a história completa sem a palavra de um líder mundial como Guterres. Olhar para o presente sem a noção histórica e o contexto não é apenas uma meia-verdade. É uma mentira.