Bartleby vai à guerra
Certas partes da vida são tão exigentes, pedem-nos tanto, que a única maneira de alguns de nós lhes sobrevivermos é faltarmos à chamada. A Guerra Colonial pode ser uma dessas partes.
“Enquanto esperava para embarcar, em Lisboa, fiquei em casa de um tio. Perguntei-lhe se arranjava maneira de eu ir ver uma revista à portuguesa. É que aqui no Porto não havia nada disso naquele tempo. E ele lá comprou bilhetes, e fomos ao Parque Mayer ver uma revista.”
Fico à espera de o ouvir contar se gostou ou não do espectáculo, de o ouvir referir algum pormenor que tenha guardado na memória. Nada. Ele cala-se e olha-me com toda a naturalidade, sem timidez. Não lhe parece importante acrescentar mais nada sobre a sua estada em Lisboa. Ou então as memórias dele reduzem-se a este esqueleto descarnado. Bem, adiante.
“Em Dezembro de 1970, embarquei no Carvalho Araújo para a Guiné, como alferes miliciano. Foi a última viagem do Carvalho Araújo. Aquilo era um cargueiro sem condições nenhumas. A tropa ia nos porões, na maior porcaria.”
Eu: “Mas desceu lá abaixo?”
“Não, contaram-me.”
Tinham-me falado de Simão, dizendo-me que era um veterano da Guiné, talvez traumatizado pela guerra. Amigo do pai de um grande amigo. “Dizem que veio de lá estranho. Nunca fala da guerra.” Foi quanto bastou para que eu, ávido das memórias alheias da Guerra Colonial, me tenha multiplicado em esforços para obter o contacto de Simão. Um combatente da Guiné, o teatro de guerra mais duro, palco de grandes violências, teria certamente muito para me contar.
“Na Guiné, passei quase dois anos em Porto Gole, uma povoação junto ao rio Geba, que é quase um braço de mar, com sete quilómetros de largura na foz.”
Óptimo, penso, isto é promissor, quem recorda este género de pormenores costuma ser um bom contador de histórias.
“Durante uns meses, fui eu a comandar a companhia, na ausência do capitão, embora não fosse o alferes mais antigo. Era o segundo mais antigo. Mas, não soube ao certo porquê, calhou-me a mim.”
Mau… sinto o primeiro estremeção. Não soube ao certo porquê? Não lhe ocorreu indagar?
Ao telefone, Simão disse-me que não tinha grande coisa para me contar e que “talvez não valesse a pena” eu viajar até ao Porto. E fez menção de me relatar a sua Guerra Colonial logo ali, pelo telefone. Desejoso de coligir histórias da guerra, vi nisto a relutância de um veterano magoado, que não se quer abrir. Não seria a primeira vez que eu deparava com um esquivo, um homem detentor de um maná de histórias reveladoras, mas que, às primeiras, se faz rogado, como num jogo de esconde-esconde. A dificuldade que o meu amigo tivera em arranjar o número de telefone de Simão vinha reforçar esta minha suspeita. Insisti, combinámos o encontro, apanhei o Alfa Pendular no dia aprazado.
“Não saíamos muito para o mato. Evitávamos. Só queríamos sobreviver, voltar para cá sãos e salvos. Política não era connosco. Fazíamos uma ou outra incursão, mas sem grande ousadia. Aquilo era uma vida um bocado pacata. Os soldados não tinham grande coisa para fazer, e nós não puxávamos muito por eles.”
Bem, a guerra era mesmo assim, penso, a alternância entre a modorra e o pavor. Aguardemos.
“De uma das vezes em que saímos, capturámos um grupo de nativos, homens e mulheres. Não estavam armados, mas desconfiámos de que davam apoio aos chamados ‘terroristas’. Ficaram presos no quartel naquela noite, num barracão, e na manhã seguinte mandámo-los de barco para a sede do batalhão.”
Até aqui, nada de novo.
“Pouco tempo depois, numa das saídas, rebentaram várias minas na picada que costumávamos usar. Acho que foi represália dos guerrilheiros, por termos prendido aquela gente. Um soldado perdeu um pé… ou foram dois soldados? Ou foi um soldado e um sargento? Já não me lembro ao certo… não tinha saído nesse dia, por sorte, foi um furriel…”
Há qualquer coisa de distanciado na maneira de narrar de Simão, como se o assunto não fosse lá muito interessante. Ou então como se não se quisesse envolver demasiado. Como alguém que evita um lodaçal onde teme atolar-se.
“O aquartelamento era atacado regularmente, sempre à mesma hora. Já sabíamos que era por volta das dez ou onze da noite. Eles não atacavam às duas ou três da manhã, não estavam para isso. E também não atacavam de dia, para nós não chamarmos os Fiats ou os helicanhões. Atacavam com RPG, com morteiros. Ao fim de uma hora, iam-se embora.”
Quem o ouvisse falar ficaria com a sensação de que os próprios guerrilheiros não estavam para se chatear muito com aquilo.
“No primeiro ataque, começaram por disparar uma costureira…”
Eu: “Uma Kalachnikov?”
“Não, a costureira não era a Kalachnikov… agora que penso nisso, se calhar até era. Agora pôs-me na dúvida, não estou certo…”
Respiro fundo. A conversa parece escorregar-me entre os dedos, ele não dá ares de impaciência nem de solicitude. Revisita estas memórias como quem desmancha a casa de um parente falecido: com a relutância resignada de uma obrigação cansativa.
“Só houve uma operação mais complicada…”
Ah, finalmente, penso. É agora…
“Foi uma operação ao nível do batalhão, todas as companhias participaram, incluindo uma companhia de recrutamento nativo. Houve tiroteio. Caminhámos muito e, no regresso, com o calor e o cansaço, senti-me mal e avisei o cabo-enfermeiro. Ele deu-me um comprimido. Não cheguei a desmaiar, mas a notícia correu pela coluna e veio logo um soldado nativo, muito espadaúdo, a oferecer-se para me carregar às costas. Mas não foi preciso.”
Pausa. Simão bebe mais um gole de café. Olha para mim. Não tem mais nada para dizer sobre a “operação complicada”. Começo a perder o ânimo. Tento sacudi-lo, despertá-lo deste torpor. Falo-lhe da rebaldaria sexual no aquartelamento do meu pai no mato, no Niassa, em Moçambique, de que me apercebi ao entrevistar os camaradas dele. E Simão, imperturbável:
“Lá na Guiné não havia nada disso. É que as pessoas da tabanca ao pé do aquartelamento eram da etnia balanta. E, para uma mulher balanta, era impensável ter relações com um branco.”
Eu: “Eram muçulmanos, os balantas?”
“Olhe, agora que me pergunta, não sei… nunca explorei essa questão religiosa. Tinham uma religião qualquer, não sei qual.”
Lanço mão de um dos bordões recorrentes da Guerra Colonial, num esforço derradeiro para o espicaçar: e caça? Havia? Vejo perpassar-lhe pelo olhar um breve lampejo, que logo se esvai.
“Ah, sim. Havia muita caça. Alguns soldados saíam, gostavam muito de caçar. Eu não. Eu não ia. Eles traziam javalis, gazelas. Principalmente gazelas. Havia por lá uns animais grandes… como é que se chamavam? Não me lembro… eram uns animais a valer… não eram bisontes, isso não…”
Eu: “Búfalos?”
“Talvez fosse isso. Queriam caçar um, mas nunca conseguiram.”
Torna a fechar-se na concha.
Eu: “E crocodilos?”
“Havia. Muitos.”
Eu, já em desespero: “Viu-os?”
“Sim, quando íamos no barco. Deitados ao sol, na margem.”
E eu, num esforço derradeiro para o despertar: “Gostava de lá voltar?”
“Em tempos, tive vontade. Mas as imagens que vi… porque alguns camaradas da companhia voltaram lá e puseram fotos no Facebook… são tão tristes, que perdi a vontade.”
E como quem dá o assunto por encerrado:
“Agora, sei que nunca lá irei voltar.”
No Alfa Pendular, de regresso a Lisboa, penso que os mesmos dois anos em Porto Gole, as minas na picada, os pés amputados, as mulheres esquivas, o tédio sem fim, os ataques com hora marcada, as explosões nocturnas das granadas de morteiro, tudo isto, narrado por um outro membro da companhia do alferes Simão, talvez se traduzisse num carrossel de emoções, de sobressaltos, de pavores febris, de epifanias, de paixões violentas, de visões fantásticas e medonhas. Mas depois penso que certas partes da vida são tão exigentes, pedem-nos tanto, que a única maneira de alguns de nós lhes sobrevivermos é faltarmos à chamada. E que talvez, no fim de contas, isto se aplique à vida inteira.
Setembro 2023