Sexta-feira, um dia de Outubro de 2023. Rascunho estas palavras fundamentalmente inspirado pelo incómodo, num final de tarde e de semana de trabalho, onde os 27º C de temperatura ambiente mais próprios de uma época estival que parece não ter fim propiciam à reflexão. Tenho 29 anos e sou médico interno de Pediatria. Sou marido de uma maravilhosa médica interna, pai de um bebé de cinco meses e outorgante de um contrato de arrendamento de um apartamento em Lisboa.
Nada mais de interesse e relevo há a referir sobre mim, a não ser o facto de que sou um crente por natureza. Quem me conhece achará que talvez até já tenha nascido crente na causa pública e saberá que a escola pública, a vida e o ofício me tornaram verdadeira e completamente crente no ideal de que a saúde só faz sentido se for para todos.
Nesta Sexta-feira de Outubro não posso deixar de sentir um incómodo particular. As notícias sucedem-se. Centenas de colegas, internos e especialistas, por todo o país, entregam a minuta de escusa de realização de trabalho extraordinário acima das 150 horas. Em poucos dias, os serviços de urgência por todo o país deixarão de ter recursos para prestar cuidados e o direito à saúde, no instante de um ocaso, deixará de ser para todos.
A partir daqui e até ao final do ano, se nada for feito, pessoas morrerão. Esta é uma constatação terrível para quem com ela sofre na primeira pessoa, mas também para aqueles que, tendo dedicado toda uma vida a esta causa pública, perceberam no Outono quente de 2023 que este seria o limite que se escusavam a tolerar e que esta realidade já não lhes permitia ser o melhor que um dia sonharam poder vir a ser.
Este dia de Outubro foi também o dia em que recebi um email na minha caixa de correio profissional. Um email que todos os médicos do SNS receberam e que nos convidava a votar na primeira edição dos auspiciosamente denominados SNS Awards.
Não discuto a pertinência ou timing de um acto meramente simbólico e de reconhecimento numa fase da vida do SNS em que a acção é mais do que necessária, e muito menos discuto o mérito e valor dos nomeados para as diversas categorias da designada e insigne honraria.
Aquilo que me intriga é a necessidade recorrente de “premiar” simbolicamente o valor do trabalho dos profissionais de saúde. Em apenas três anos, depois das palmas à janela e da final da Liga dos Campeões, surgem os SNS Awards. Mas porquê? Porque é que se insiste em premiar o valor do trabalho em vez de se valorizar o trabalho dos profissionais?
Se me for permitido opinar, diria que a valorização do trabalho não pode passar por um sistema viciado de salários baixos em que o vencimento mensal está dependente de horas extra. A valorização do trabalho não pode ser um limite de 150 horas extraordinárias anuais atingido em Março de cada ano.
Não pode residir na necessidade dos profissionais acumularem trabalho e trabalhos, em contextos públicos e privados, pura e simplesmente para poder manter um nível de vida digno e de acordo com a expectativa normal para quem lida com a vida de outrem.
A valorização do trabalho não pode viver na perpetuação de contextos e ambientes tóxicos, burocráticos e pouco eficientes em que os níveis de exaustão física e emocional são de tal forma altos que os profissionais se vêem obrigados, dia após dia, a praticar de uma forma imperfeita aquilo que sabem poder fazer melhor.
A lista já vai longa e a tarde vai chegando ao final. A vontade de ser aquilo que um dia sonhei não se esbate, a crença na causa pública não desvanece, mas há dias em que as dúvidas vão surgindo. Valerá a pena? E até quando? Acredito que o sentimento é partilhado por uma classe profissional esmorecida, desmotivada e desalentada.
E é a partir deste sentimento que, por estes dias, a revolução vai saindo à rua de uma forma que nada de bom trará para aqueles que são a prioridade de quem agora se revolta: os doentes.
Caros decisores políticos, não faz falta premiar o valor do trabalho. Faz falta dar valor ao trabalho. Até quando e até onde temos de esperar? Não tenho a resposta, mas talvez já não reste muito mais tempo.