A nutrição enquanto “trabalho invisível” no desporto
A nutrição em contexto desportivo tem ganhado relevância na última década. Mas a questão que se põe é: quão influentes podem ser as estratégias nutricionais no resultado final de uma competição?
Não poderia começar este artigo sem declarar um conflito de interesses: toda a minha vida profissional gira à volta da nutrição em contexto desportivo e de prática de exercício físico, seja em contexto de clube desportivo ou de atletas que me procuram para consulta. Como tal, não seria agradável se eu concluísse que a nutrição tem pouca (ou, quiçá, nenhuma) influência no rendimento de um atleta. Mas posso desde já descansar-vos: se fosse o caso, já teria perdido todo o fascínio e encanto que tenho pela área na qual tenho a sorte de trabalhar.
A verdade é que a nutrição é uma ciência relativamente jovem, ainda que a quantidade de pessoas que já foram a uma consulta de nutrição, pelo menos uma vez na vida, seja muito elevada. A valorização da área por parte de clubes desportivos também não deixa margem para dúvidas: desde há dez anos, e olhando apenas para dados dos “três grandes” do futebol português, verifica-se um aumento de 800% nos nutricionistas que prestam apoio nas diferentes modalidades e escalões.
As funções dos nutricionistas nestes contextos são muitas e variadas: criação de ementas para o dia-a-dia de treino e competições, ajuste dos alimentos para treinos com diferentes exigências; avaliação e interpretação da composição corporal (as famosas massa gorda e massa muscular); seleção, aquisição e preparação de suplementos alimentares; ensino a atletas e equipas técnicas das práticas nutricionais que mais impacto têm na performance; elaboração de planos alimentares individualizados; criação de estratégias de preparação para a competição. Não há um único destes pontos que não esteja devidamente validado pela ciência, como veremos.
Comecemos pela “crise dos combustíveis”: ainda que haja várias possibilidades de obter energia durante o exercício, sabe-se que os hidratos de carbono (armazenados na forma de glicogénio, no músculo e fígado) e a fosfocreatina são dois dos mais impactantes, e que são um fator que limita a performance em diferentes desportos.
No caso dos hidratos de carbono, a sua importância é enorme para atletas de endurance (maratonistas, ciclistas…), assim como em desportos intermitentes de alta intensidade (futebol ou râguebi são dois bons exemplos). A fosfocreatina, por sua vez, é mais fulcral para desportos muito intensos, durante períodos curtos de tempo, como sprints de 200 m ou, novamente, desportos de equipa.
Ora, a nutrição apresenta excelentes soluções para os dois casos. Consumir muitos hidratos de carbono nas 36 a 48 horas que antecedem uma prova permite quase duplicar o glicogénio muscular, enquanto suplementar diariamente com creatina permite aumentar as reservas musculares de fosfocreatina em 17% a 29%. Este aumento de glicogénio, permite aos atletas correrem por mais tempo a uma intensidade pré-definida, assim como em provas contrarrelógio. Já a suplementação com creatina resulta em maiores ganhos de força e massa muscular assim como na potência, em desportos intensos como o futebol ou a natação. E, contra as expectativas iniciais, até mesmo em desportos de endurance pode ser útil, uma vez que em muitos casos é o sprint final que determina o vencedor.
A quantidade de massa muscular e massa gorda de um atleta também são importantes preditores de sucesso, sendo que a nutrição tem um papel fundamental em ambos (com especial preponderância na perda de massa gorda). A monitorização desta composição corporal no desporto também fica, habitualmente, a cargo de nutricionistas, que para além do que aprendem na sua formação académica ainda dão o passo seguinte, tornando-se antropometristas acreditados. As pregas e perímetros que medem com frequência são, na verdade, o método com mais vantagens para a monitorização constante ao longo de uma época desportiva, e uma parte importante da rotina de atletas de elite.
A seleção de suplementos alimentares que possam potenciar a performance é outra das áreas de interesse. Para além da famosa creatina, a cafeína tem também um papel importantíssimo, melhorando a performance não só em exercícios de alta intensidade como também nos treinos de força ou em desportos de endurance. Já com maior especificidade para desportos intensos (e com relativamente curta duração), encontra-se uma tríade interessante: beta-alanina e bicarbonato de sódio, que permitem lutar contra a acidez que resulta do exercício, e os nitratos, que dilatam os vasos sanguíneos, assegurando um maior aporte de oxigénio ao músculo. Sendo que o risco de comprar suplementos que possam conter substâncias proibidas (declaradas nos rótulos ou por contaminação) é grande, a seleção de marcas e lotes é fundamental em contexto de elite.
Para além de tudo isto, há ainda o planeamento do que pode (e deve) um atleta ingerir durante uma competição. E aqui há também investigações com resultados engraçados: uma estratégia para prova planeada por um nutricionista permitiu a ciclistas e maratonistas melhorarem a sua performance, comparativamente a quando competiam com base no que achavam benéfico. É certo que a amostra dos estudos não incluiu a elite de cada desporto, mas temos razões para acreditar que nestas populações o benefício também é muito significativo. Até porque, na elite de muitos desportos, melhorar a performance em 0,5 a 1% pode ser a diferença entre um lugar fora do pódio e um primeiro lugar.
Por tudo o que acabei de referir, admito que a forma como a nutrição no desporto tem vindo a crescer, muito à custa da perceção da sua importância, deixa-me muito satisfeito. Mas a verdade é que há ainda muito caminho para desbravar, nomeadamente no conhecimento sobre as diferentes estratégias nutricionais e na forma como os nutricionistas traduzem ciência para contextos práticos. Para além desta necessidade de melhoria, a sensibilização de atletas e clubes também não pode parar: por muito que o futebol seja um caso de sucesso, noutros desportos com verbas mais limitadas não há ainda a presença frequente de nutricionistas, que são, claramente, elementos-chave naquilo a que se chama “treino invisível”.