Ser detida sem direitos e condenada num artigo de opinião

Na ausência de capacidade de resposta na defesa de direitos fundamentais, ou de mera honestidade por parte da lei, cabe-nos a nós — pessoas normais — resistir pelos nossos direitos.

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Megafone P3: Ser detida sem direitos e condenada num artigo de opinião LUSA/Antonio Pedro Santos
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Anteontem neste jornal decidiu-se ignorar contexto, ignorar moralidade e ignorar a realidade. Subtraiu-se um autor da função de juiz para ocupar a posição de absolutista, que condena de ânimo leve num artigo de opinião.

Apela-se a realidades abstractas onde as acções de pacifistas, que atrasam o trânsito 15 minutos, são equivalentes a actos de terrorismo, e a pintura e quebra de vidros (por uma professora e um explicador de ciências, note-se) com coação violenta.

"O princípio é exactamente o mesmo". Nem o princípio, meio ou o fim são os mesmos. Nenhuma acção acontece no abstracto, com reivindicações abstractas, com pessoas abstractas. Equiparar pessoas normais que reivindicam o direito à vida a terroristas é perder qualquer pretensão de imparcialidade, e embarcar num projecto ideológico de protecção dos interesses de quem produz a crise climática.

A OMS diz que a crise climática já nos está a matar às centenas de milhares. Esta crise tem culpados, que sabem do seu papel há décadas. Nada disto é novo. Só é novo que em Portugal se levem crises a sério.

Vindo de um representante dos juízes portugueses, o ódio ao activismo expõe uma verdadeira bancarrota científica, que não deseja fazer parte da solução para o maior crime que enfrentamos.

Se é irrisório comparar acções que ripostam contra a quebra do direito inalienável à vida com "terrorismo", é ainda mais não usar todo esse ânimo para condenar as acções dos governos, instituições, e empresas que nos matam. A lei prefere condenar quem faz soar o alarme de emergência em vez dos culpados pelo fogo.

Se os activistas não têm a legitimidade de fazer soar a emergência, pergunto, quem deu legitimidade ao Governo para viciar a economia em combustíveis fósseis quando já se sabia da crise climática? Quem deu mandato à Galp, REN, e EDP para condenar à morte a cada dois dias mais pessoas do que os incêndios de Pedrógão Grande? Onde estão as acusações de terrorismo para quem de facto mata milhares?

Uma lei que no abstracto protege a normalidade, no concreto protege uma normalidade onde centenas de milhares são assassinados conscientemente todos os anos. Se as acções de um grupo pequeno de empresas fósseis são consideradas justas aos olhos da lei, não é de admirar que se esta mesma lei condene quem se revolta contra esta justiça suicida.

Estamos num momento de crise que, como em toda a história, requer respostas de crise. Se não condenamos os movimentos de direitos civis que todas estas leis quebraram, as sufragistas por quebrar vidros e parar estradas, ou os movimentos anticoloniais por reivindicar um presente que é seu por direito, então sabemos da importância do contexto ao julgar.

Nenhum destes grupos tinha ao seu dispor canais democráticos para reivindicar direitos? Certíssimo. Mas o mesmo sucede hoje com ainda mais gravidade. Para além de uma descrença esmagadora nas instituições que desistiram da democracia (92% dos portugueses coloca a crise climática como preocupação, sem qualquer resposta institucional adequada), repito: vivemos um momento de crise, que historicamente necessita de democracia de crise.

As instituições estão activamente a produzir uma normalidade onde as emissões portuguesas matam. Por cá retiram direitos a 12 activistas sem justificação legal. Em Espanha ameaçam categorizar um grupo de cientistas como "terroristas" por colocar tinta no parlamento. Se a lei estrutura o nosso mundo, em colapso climático vivemos uma lei de um mundo que já não existe.

Na ausência de capacidade de resposta na defesa de direitos fundamentais, ou de mera honestidade por parte da lei, cabe-nos a nós — pessoas normais — resistir pelos nossos direitos. Não o podemos fazer a sós, e não temos tempo a perder. A democracia está hoje na rua, e para ela ganhar precisa de ti.

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