O Circuito das Beiras, uma corrida reservada a carros e motociclos, foi, em Novembro de 1903, a primeira prova de desporto motorizado por etapas realizada em Portugal. Em Setembro, os 120 anos da epopeia foram marcados com uma reconstituição rigorosa da prova, que levou 31 veículos clássicos exactamente pelas mesmas estradas da primeira edição, ao mesmo tempo que foi lançado O Circuito das Beiras e o Espírito Visionário de José Caetano Tavares de Mello, do historiador José Barros Rodrigues, que homenageia o visionário que tornou Coimbra a capital portuguesa do automóvel no início do século XX.
É certo que, antes da primeira edição do Circuito das Beiras, já tinham sido realizadas provas automobilísticas em Portugal, mas sempre em circuito fechado ou a fazer a ponte entre duas cidades. Foi aliás por causa da corrida Figueira da Foz - Lisboa, em 1902, na qual viu o seu Darraq desclassificado, que Tavares de Mello idealizou uma prova que não só desse destaque aos Darraq, mas ao automóvel como meio de transporte — e ainda servisse para divulgação da região beirã.
O papel desta personagem multifacetada, pioneira na difusão dos veículos motorizados, não ficou por ali. Praticante de vários desportos, foi o primeiro importador de motos e automóveis (Darraq, claro!) em Portugal, numa altura em que as poucas viaturas existentes eram encomendadas directamente à fábrica. Foi também o criador da primeira rede de concessionários, tornando mais fácil a aquisição de veículos motorizados, e fundou o primeiro periódico dedicado ao automobilismo, Portugal Chauffer. Mais tarde, fundou a sua própria marca de automóveis e motos, a Tavares, e, tendo por base os veículos pesados franceses Brillié-Schneider, começou a fabricar veículos comerciais — os autocarros Tavares constituíam uma carreira de transporte de passageiros em Coimbra, com enorme sucesso na época.
Mas voltemos à linha da partida do último Circuito das Beiras by Bridgestone/First Stop, em Coimbra, a partir de onde 31 viaturas clássicas se fizeram à estrada, em meados de Setembro, num percurso circular de 440 quilómetros que nos fez recuar no tempo. Até porque, por cortesia das Estradas de Portugal (que mantém muitos dos troços das estradas percorridas em condições de piso similares às do início do século passado), a aventura foi brindada por uma enorme autenticidade face às circunstâncias em que decorreu a prova em 1903.
Os veículos foram divididos em duas classes: 21 modelos dos anos após a Segunda Guerra Mundial, sendo o mais novo um Mercedes 280S de 1978, e dez do período pré-II Guerra, entre os quais reluziram mais um Darraq 12 HP Open Tourer de 1902 (irmão gémeo do Darraq que venceu a prova em 1903), participando pelo Museu do Caramulo, e um Berliet MGB-2, de 1926, do Museu da História do Automóvel de Salamanca.
Estes dois museus de automóveis antigos, os mais importantes da Península Ibérica, não só participaram no evento com belas viaturas, mas, trazendo reboques e mecânicos, complementaram a assistência aos veículos participantes assegurada pela Bridgestone e pela First Stop, pelo que as pequenas avarias ocorridas durante o percurso foram rapidamente resolvidas. Mas, claro: agora, como há 120 anos, há sempre imprevistos. Na edição de 2023, foi a chuva torrencial que se apresentou como um visitante indesejável, em especial no segundo dia, dificultando a vida aos concorrentes (em particular dos que não tinham capota nos carros) e impedindo a efectivação de alguns pontos do programa.
Não foi o caso da passagem por Conímbriga, onde foi possível visitar as ruínas da cidade pré-romana, que no seu auge, sob o domínio romano, terá tido cerca de dez mil habitantes, ou da prova de perícia/slalom em Castelo Branco, organizada pelo Clube de Automóveis Antigos da cidade.
Enquanto houver estrada esburacada para andar...
O segundo dia reservava a etapa mais difícil, até pela chuva diluviana e ininterrupta que se abateu sobre todo o percurso e ao mau estado de muitas das estradas. Que o diga a dupla do Darraq de 1902 do Museu do Caramulo, o condutor Tiago Gouveia e o co-piloto Tiago Branco, que, estoicamente, decidiram abdicar da possibilidade dada pela organização de cumprirem apenas os primeiros e os últimos 20 quilómetros de cada etapa. Resultado: levaram “uma tareia”, viriam a confessar à Fugas. E, em alguns momentos, acrescentaria Gouveia, viram-se na necessidade de reduzir a já por si “meteórica” velocidade de 25 km/h, com receio de sofrer uma avaria, dada a quantidade de buracos existentes nas vias.
No decurso desta moderna edição do Circuito das Beiras, organizado pelo Clube Escape Livre, só por uma vez “fizeram batota”. Não por problemas mecânicos, mas sim cronológicos: a última etapa tinha 160 quilómetros e a uma média de 20/25 km/h ser-lhes-ia impossível chegar a horas para o almoço. Assim, recorreram ao transporte sobre reboque.
Mas, independentemente das suas limitações, o Darraq foi a estrela da prova, tendo conquistado o título de carro mais bonito desta edição, escolhido por todos os participantes. E esteve bem secundado pelas outras viaturas, em óptimo estado de chapa, pintura, interiores e mecânica, como um bonito Ford A verde de 1930, que não só cumpriu o percurso na íntegra como fez a viagem de Lisboa a Coimbra pela auto-estrada a uma boa velocidade. Caso para dizer que velhos são os trapos.
A Fugas participou no evento a convite da Bridgestone
(Artigo actualizado com a menção das entidades responsáveis pela assistência aos veículos participantes)