Vacinação sazonal covid-19 e a ameaça negacionista
Um dia depois do anúncio da atribuição do Prémio Nobel da Medicina aos cientistas Drew Weissman e Katalin Karikó pelas suas descobertas inovadoras que permitiram o desenvolvimento de vacinas ARN-mensageiro eficazes contra a covid-19, o programa Casa Feliz da SIC convidou a coordenadora do Núcleo de Vacinação da Direcção-Geral da Saúde, Diana Costa, para dar conta da campanha de vacinação sazonal contra a gripe e a covid-19 iniciada a 29 de Setembro. Também presente esteve o médico internista Almeida Nunes, colaborador regular neste e noutros talk shows da SIC. Presumo que o programa tenha sido pré-gravado antes do anúncio da atribuição do Nobel, caso contrário não encontro explicação para que esse facto tenha sido omitido.
A responsável da DGS cumpriu a função pedagógica que se exige neste tipo de programas televisivos, a de transmitir ao auditório (composto maioritariamente por pessoas das classes D e E acima dos 50 anos) uma mensagem que explique as vantagens da vacinação contra a covid-19, não só nos grupos prioritários mas também nas pessoas com mais de 12 anos. Precisou ainda que a nova vacina da covid-19 aprovada pela Agência Europeia do Medicamento (AEM) foi adaptada às novas subvariantes da Ómicron em circulação.
Esperar-se-ia que o “médico da casa”, cujo estatuto televisivo o aproxima de um influencer, corroborasse a opinião da farmacêutica Diana Costa. Ao invés, Almeida Nunes não só veio assumir publicamente a sua posição contra a vacinação em jovens, como ainda teceu uma série de considerações sobre as vacinas ARNm muito próximas da estafada cartilha negacionista sobre a “vacina experimental”, as quais não demorariam muito a ser difundidas nas redes sociais da desinformação. Dirigindo-se a Diana Costa em tom paternalista e num registo de humor sexista – “aqui a minha querida doutora, ela é muito querida e muito gira… diz aquilo que lhe ensinaram”, referiu que “estas vacinas não têm as provas e percurso feito como a vacinação deve ter”, que “os efeitos indesejáveis relevantes, em particular nas camadas jovens foram escamoteados”, que na “população mais idosa a vacinação deve ser vista caso a caso”, e que “devemos deixar os miúdos apanhar a covid à vontade para assim ganharem anticorpos”. Ora, estudos publicados sobre a eficácia das vacinas apontam para mais de 12 mil mortes evitadas em Portugal e 20 milhões a nível global desde o início da vacinação, e não consta que os efeitos adversos verificados tenham sido escamoteados pelo Plano de Farmacovigilância implementado pela AEM e pelo Infarmed, cujo Relatório de Farmacovigilância relativo à monitorização da segurança das vacinas contra a covid-19 é público.
Quanto às novas vacinas para 2023/24, mereceram a luz verde da AEM depois da evidência experimental comprovada por ensaios clínicos. Cabe aqui recordar que Almeida Nunes e outros médicos que argumentam com a falta de provas da eficácia das vacinas contra a covid-19, são os mesmos que em 2021 pressionaram o Infarmed e a DGS para a utilização do medicamento antiparasitário ivermectina contra a covid-19, apesar de a Organização Mundial de Saúde, a Food and Drug Administration norte-americana, ou a AEM não o recomendarem para esse fim por não existirem provas de algum efeito preventivo ou outro.
Portugal pode orgulhar-se da cobertura vacinal primária, que se situou em 98% na faixa etária dos 12 aos 24 anos, e de 100% a partir dos 25 anos. No entanto, os números decresceram sucessivamente nas doses de reforço e no Reforço Sazonal Outono-Inverno 2022-2023, o que nos alerta para a necessidade da DGS se empenhar na informação à população sobre os benefícios da vacinação covid-19. Assim, não é aceitável que um talk show com as características da Casa Feliz, que combina as vertentes de entretenimento e informação, dê palco a profissionais de saúde que vêm lançar dúvidas sobre a eficácia das vacinas contra a covid, desvalorizando os benefícios e enfatizando os riscos.