Os sinos davam forma à boca das calças, que acabavam num pé meio sumido, mas nunca parado. Badalavam as horas da folia, das danças robotizadas, do descompasso das mãos com o corpo e do lábio a eito para demonstrar a vibração do som. Pelo meio havia cabelos volumosos, patilhas grandes e sapatos com plataformas a fazerem o corpo chegar ao nível de confiança da mente dançante.
Eram os anos 70 a irromper com estilo na cultura pop e em Portugal continuávamos “PREC a fundo” rumo à estabilidade pós-ditadura. Ou achávamos nós.
Já com a década de 1970 cimentada e com as lantejoulas a darem brilho aos quotidianos ainda a sépia, o multifacetado (e polémico, mas separemos a arte do artista) realizador/actor/músico Woody Allen deixava-nos com um clássico que se tornaria imortal pela forma como nos envolveu, nos aproximou da história e nos deu frases icónicas a servirem de mote a episódios da nossa própria vida.
Esses trechos de desabafos ditos em voz alta ganharam vida com Alvy Singer (Woody Allen) um comediante neurótico, introspectivo, depressivo e obcecado com a morte - uma personificação do actor e do realizador do filme -, como por Annie Hall (Diane Keaton) uma "cantora-aspirante" recheada de vida e com uma mente à frente do seu tempo, um espírito muito livre contrastante com o do seu vai-não-vai companheiro.
A relação de ambos vai-se desenvolvendo ao longo dos 93 minutos desta relacionável história. Do êxtase dos primeiros tempos, à estranheza de conhecer alguém diametralmente oposto a nós e à desavinda vontade de amar, ainda mais difícil para quem tem o mundo a borbulhar na cabeça.
Estavam lançados os alicerces para o que se tornaria o Coliseu dos eternamente apaixonados, canonizados pelo espírito do amor, mas amarrados ao turbilhão dessa mente frenética, a retrair mais acções do que a promover boas decisões. A mais de meio do filme, somos confrontados com uma ideia mais impactante do que a viagem de avião onde se desenrola a acção.
Os pensamentos acabam sonorizados, pintados com expressões sintomáticas dos sentimentos cozinhados em lume brando e atirados a ferver, sem termómetro para aferir se vale a pena entornar o caldo. Alvy está sentado ao lado de Annie e resolve dar voz ao motim armado pendurado nos seus ombros, ripostando a um “a nossa relação não está a funcionar”.
“As relações são como tubarões: ou continuam a movimentar-se para a frente, ou morrem. Acho que temos um tubarão morto em mãos.” Dito assim. Sem medo, com a certeza de que a reanimação não será possível, mas certo de se terem encontrado a meio da mesma encruzilhada.
É inusitado termos a pretensão de pensar que algo parará. A arrogância desmedida de assumir o nosso mundo como o centro da acção é de protagonista brega de um Western low budget dos anos 40. Será sempre esse foco no “eu” a levar o “nós” a estagnar.
A apatia é inimiga de qualquer acção que se siga. Colocamo-nos na almofada do conforto e dormimos uma sesta por debaixo do chaparro por nós construído. As folhas vão, os ramos envelhecem, mas achamos sempre estar tudo bem, desde que a árvore não vá a algum lado. Não nos preocupamos em nutrir, cuidar, investir ou mimar esse tubarão que nos parece nadar sempre da mesma forma, desde que a lembrança tomou conta das características do que ali vemos.
Relembramos com gosto. Brindamos olhos nos olhos. Saudosistas de mão-cheia. Dão-se abraços, mas menos frequentes. Nas relações de amor, os beijos tornam-se a torrada com café - não se abdica, mas já só sabe tudo a manteiga. Saber, sabemos pouco. Perguntamos o básico.
Assumimos a percentagem necessária para não cometer qualquer gafe. Relemos o guião, vemos se os “is” tem os pontos certos e voltamos a colocar o tubarão na água. No aquário, para o vermos ao longe - nunca o perdendo de vista - mas sem lhe dar espaço para crescer.
Nem sempre é fácil fazermos a catarse necessária para podermos ver tudo com mais clareza. Picamos o ponto e o trabalho faz-se por si, assumimos. Os tubarões vão passar ao nosso lado com a sua cadência usual e vamos achar que a velocidade deles é demasiado acelerada.
Sejam elas de que natureza forem, as relações não resistem à monotonia e não podem estagnar na força do passado. Pedem evolução. Movimento. Desde que esse movimento não seja nadar para trás ou parar na ousadia de achar que nada muda. Cabe-nos não deixar o tubarão morrer-nos nas mãos.