A língua-pai
Há já algum tempo que não nascem mirandeses com a “lhéngua” como língua-mãe. A havê-los, contar-se-ão pelos dedos das mãos. Mas muitos, alguns milhares, mantemos contacto estreito com “a língua-pai”.
“Nunca me vou esquecer de onde venho”, dizia Cristèle Alves Meira, a realizadora de Alma Viva, ganhador do Globo de Ouro para melhor filme em 2023, filmado na Junqueira, concelho de Vimioso, território integrante da medieval Terra de Miranda, no Nordeste Transmontano.
Creio poder dizer que todos os transmontanos se reviram na frase e, estou certo, no seu íntimo enalteceram a realizadora conterrânea. Conquanto seja certo que em todo o lado existe apego ao torrão natal em quantidades variáveis, Trás-os-Montes em geral e a Terra de Miranda em particular são alfobres onde o sentimento medra livremente nos peitos. Tal como Torga, o poeta transmontano por excelência, nos ensinou: “Onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? Porque, mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre‑lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora.”
Falo disto porque, quando falamos de acarinhar a identidade (quem somos, “de onde venho”), a língua que falamos é fator cimeiro e primordial. A língua-mãe, aquela que mamamos no colo, a que nos une aos nossos patrícios, aquela em que sonhamos.
Tal como Cristèle, também eu nasci na Terra de Miranda, o território do Nordeste português compreendido entre o Douro Internacional e o rio Sabor, limitado a sul por Lagoaça (atual concelho de Freixo de Espada à Cinta) e a norte por Outeiro… de Miranda (atual concelho de Bragança). É o primeiro território reconhecidamente bilíngue em Portugal e nele coexistem ainda hoje duas línguas: o português, a fala “fidalga” ou “grabe”, e o mirandês, a língua “charra”, baixa, dos pastores e boieiros do planalto, o leonês falado em Portugal, aquela que, já tendo sido língua da corte mais importante da Península Ibérica (no Reino de Leão baixo-medieval), foi, durante os séculos seguintes, mercê das malhas que os impérios tecem, sempre apontada como um português “mal falado” ou uma mistura de português e castelhano. “Charra”, portanto, sem valor.
Até há bem pouco — vamos dizer anos 90 do século XX — falar mirandês foi sempre visto como um estigma, marca indelével de ignorância e ultramontanismo. Sempre nos disseram que falávamos “mal”, nunca nos disseram que falávamos “diferente”. Acresce que, desde há bastante tempo, todos os mirandeses são bilíngues, porque falantes também de português, o falar “fidalgo”. Ora, isto empresta à língua mirandesa um caráter absolutamente redundante do ponto de vista pragmático ou utilitário.
A minha geração, nascidos nos anos 60/70 do século XX, foi aquela que viu a transmissão intergeracional familiar da “lhéngua” quebrar-se e começar a ficar debilitada. Isto mercê de vários fatores, claro: o seu baixo valor social; o fator “estigmatizante” perante os alheios à comunidade; a sua redundância comunicativa; e a óbvia pressão glotofágica por parte da língua “fidalga”, o português, agora já estribado na escolarização universal e na progressiva generalização dos meios de comunicação social. Foi na minha geração que começaram a ser mais vulgares os mirandeses com o “fidalgo” como língua-mãe.
Acontece que todos esses não eram — não éramos e não somos! — filhos de mãe solteira e “órfãos de pai” no que a línguas respeita. Tivemos língua-mãe, sim, então já o português, mas tivemos também o mirandês como “língua-pai”. Sim, nas famílias mirandesas, e em especial nas famílias grandes que são as aldeias mirandesas, sempre por ali esteve bem presente outra língua, a qual, não lhe podendo chamar mãe, podemos talvez chamar “língua-pai”.
Ora reparai: a língua-pai, que não nos deu a teta, mas também nos deu o ser; a língua-pai, a quem não recorremos nas dores de barriga, mas sabemos estar também ali, pronta para nos valer se necessário for. E já se sabe: não se pergunta a ninguém se gosta mais da mãe ou do pai, como bem nos mostrou Fracisco Niebro, o nosso maior poeta no poema clássico Dues Lhénguas: “Tengo dues lhéguas comigo, i yá nun passo nien sou you sien ambas a dues.”
E agora o nosso drama é este: o Pai já não é o homem rijo e valente que nos velou os dias e garantiu o sustento durante séculos. Vê-se débil e pusilânime, as forças de quem um dia foi a língua mais importante da península parecem ser só uma sombra. Segundo o último estudo — da Universidade de Vigo, coordenado pelo catedrático Xosé Costas em 2020 — falarão hoje mirandês umas 3500 pessoas, havendo mais 1500 que, querendo, poderão também utilizá-lo. Poucos, cada vez menos. Segundo o mesmo estudo, se não forem tomadas medidas enérgicas por parte de Portugal, o mirandês pode desaparecer como língua viva nas próximas dezenas de anos.
Quer Portugal salvar o mirandês? Queremos, os mirandeses, tirar do purgatório a alma do nosso povo?
Há já algum tempo que não nascem mirandeses com a “lhéngua” como língua-mãe. A havê-los, contar-se-ão literalmente pelos dedos das mãos. Mas muitos, alguns milhares, mantemos contacto estreito com “a língua-pai”. É ela que continua a dar-nos o ar de família, o sobrenome.
Pois não queremos que o pai morra no asilo, à míngua e escondido dos olhares de todos, mas que podemos, os mirandeses, fazer para salvá-lo? Como explicamos a um jovem mirandês de hoje, para quem a “lhéngua” é quase um avô desconhecido, que não podemos deixar a família esboroar-se?
Bom, para lá de todas as medidas — urgentes — que o Estado português e as instituições têm o dever de tomar para salvaguardar este património singular e inestimável da nação portuguesa (é bom não alimentar a frequente confusão entre Portugal e língua portuguesa; os mirandeses, falando outra língua, são portugueses de primeira hora e primeira água, e sempre tal quiseram ser; Miranda do Douro ofereceu-se, ademais, bastas vezes em imolação para defender a integridade portuguesa) para lá de tudo o que institucionalmente pode e deve fazer-se — está elencado, não é pouco, mas seria fastidioso referir aqui — o que pode um mirandês fazer, o que posso eu fazer para “tirar o pai da forca”?
A resposta é óbvia e quase desarmante na sua simplicidade: o que se tem de fazer é usar a “lhéngua”. Ao contrário dos bens perecíveis, as línguas não se gastam por ser usadas, bem ao contrário, enriquecem-se e revigoram-se de cada vez que são usadas. Se se trata de fazer viver uma língua, “as lérias adubam mesmo as sopas”.
E ter sempre em mente, como há bem pouco Rui Tavares, o deputado único do Partido Livre, intervindo para defender a língua mirandesa, lembrava na Assembleia da República, falando em mirandês: é melhor mau mirandês do que nenhum mirandês. Donde, a desculpa de “não sei falar”, “não sei escrever” não passa disso mesmo, uma desculpa.
Claro, outra coisa que podemos fazer para animar “la lhéngua pai” é escrevê-la. Ou escrever sobre ela nos jornais. Olha, a minha “jeira de hoje” para lhe dar alento, ainda que pouco, é escrever este artigo. Um grão de areia, que pode ser um punhado e depois um monte, uma montanha, uma serra.
O que, tereis de concordar, é bastante mais simples do que fazer um filme para não esquecer de onde vimos.
Associação de Língua e Cultura Mirandesa
Leia a versão em mirandês: La lhéngua pai