Três rios, duas estradas, um território: à volta do Douro, entre o Paiva e o Tâmega
Por terras de Marco de Canaveses e Castelo de Paiva, nas paisagens marcadas por Tâmega, Douro e Paiva, não faltam imagens de postal onde pousar a vista. Em querendo, há vinhos e boa mesa a acompanhar.
Aquela manhã chuvosa de início de Setembro, com as paisagens ofuscadas pelo céu carregado de nuvens, era o suficiente para tirar o encanto a muitos refúgios paradisíacos. Contudo, a Quinta de Santo António, no Torrão, concelho de Marco de Canaveses, alcançada após umas quantas curvas e contracurvas, desce até ao Tâmega, bem próximo do ponto onde este se encontra com o Douro, e fez-se anunciar com encanto: uns quantos edifícios plantados em forma de socalco e um vinhedo que parece tocar as águas do rio. Não há dia chuvoso que estrague isto.
Não é preciso caminhar muito para perceber que o hotel se virou, por inteiro, para o curso de água que marca a paisagem daquele território, fazendo do Tâmega uma bandeira. O rio agradece, uma vez que, por aquelas bandas, vai dividindo protagonismo com os vizinhos Douro e Paiva. E os hóspedes também, pelo gosto com que se adormece e se acorda de olhos postos no rio.
A unidade hoteleira resultou da requalificação de uma propriedade de quatro hectares, outrora pertencente a uma família nobre do Porto. O empresário Jorge Azevedo, apaixonado que é pela sua terra, decidiu criar um hotel diferenciador, que pudesse colocar a sua freguesia no mapa. Na antiga casa senhorial, instalou os 12 quartos e o restaurante, onde são servidos também os pequenos-almoços. Ao redor, mas sempre de frente para o rio, foram construídas dez villas, assim como uma piscina exterior, de rebordo infinito, e hidromassagem.
O projecto de arquitectura, assinado pela sua mulher, Marta Aguiar, apostou em linhas simples e elegantes, reservando um lugar privilegiado para um bar acessível por terra ou por água – o Foz Hotel Bar está aberto a não-hóspedes e tem um cais próprio –, no qual se pode tomar um vinho ou um cocktail com vista para o rio.
Por falar em vinho, a Quinta de Santo António tem produção própria e faz questão de brindar os hóspedes com os brancos que nascem das suas vinhas. A aventura começou em plena pandemia e foi protagonizada pelo proprietário do hotel. “Na altura do confinamento, passei os meus fins-de-semana aqui, a plantar as videiras”, recorda, orgulhoso de ver o seu objectivo tornado realidade. Acaba de lançar as primeiras garrafas de Lançavilla – a primeira produção aconteceu em 2022 – e já sonha acrescentar mais algumas referências às três apresentadas este ano, a saber: Azal, Alvarinho e Avesso.
O segredo é a alma do negócio e, por isso, ainda vai ser preciso esperar mais um ano para conhecer as novidades da casa que quer continuar a produzir exclusivamente para a sua adega – onde são promovidas provas abertas ao público – e para o restaurante do hotel. “O objectivo é ter os nossos vinhos apenas na quinta, para consumir aqui e vender aos clientes”, anuncia Jorge Azevedo, que continua a dedicar parte do seu tempo às vinhas, especialmente no tempo das vindimas.
Gastronomia regional com toque de autor
A apresentação dos vinhos Lançavilla fica por conta de Davide Couto, chef do Olivetto, restaurante do hotel, que, juntamente com o enólogo António Sousa, também tem tido uma palavra a dizer na produção dos vinhos da casa. Depois de ter estado vários anos a trabalhar no Porto – passou pelo Oficina e pelo Foz Velha –, decidiu regressar a casa e contribuir para o desenvolvimento da sua terra, Marco de Canavezes. “Isso dá-me outra motivação”, testemunhava, pouco antes de fazer as honras da casa no que às provas, gastronómica e vínica, dizia respeito.
Cada prato, anuncia, surgirá acompanhado por um vinho Lançavilla. Para acompanhar o bacalhau de cura caseira, salada de pimentos e croûtons de alho, o chef escolheu o Azal 2022, um vinho leve e frutado, que já começa a conquistar alguns fãs. O folhado de queijo de cabra e compota caramelizada foi harmonizado com o Avesso 2022. Já o polvo com puré de batata-doce, espargos e pimento vermelho assado pedia “um vinho mais complexo”, como o Alvarinho 2022.
No restaurante que foi buscar o nome às oliveiras que habitam a Quinta de Santo António – algumas delas seculares – impera a “gastronomia tradicional da região, com um toque de autor”, destaca Davide Couto. O bacalhau, o polvo, a vitela e o porco bísaro estão entre os produtos-estrela da carta, que vai sofrendo alterações “consoante as estações do ano”.
Estrada fora, com vista para os rios
Da aldeia do Torrão ao município vizinho de Castelo de Paiva é um salto, ao longo de uma estrada digna de ser percorrida: a Nacional 108, que acompanha a margem esquerda do Douro, desde o Porto até Bagaúste, na Régua. Como a chuva tinha dado tréguas, a tentação de fazer um pequeno desvio tornou-se irresistível. Afinal de contas, ainda há uma réstia de Verão para aproveitar e, com um bocado de sorte, o Outono há-de chegar soalheiro.
Outrora ponto de paragem dos barcos-rabelos, a praia fluvial de Bitetos é, actualmente, um dos locais mais procurados para ir a banhos na margem direita do Douro. Além de dispor de uma zona com areia, nadador-salvador e infra-estruturas de apoio (balneário e bar), é também servida por um ancoradouro. Fica prometido um regresso, com tempo de feição.
De volta à estrada, primeiramente na Nacional 108 e, depois de atravessar o Douro, pela já célebre Nacional 222, que toma conta da margem direita do rio, é tempo de rumar a Castelo de Paiva, território que vai andando nas bocas do mundo por causa do seu Vinho Verde, da sua gastronomia e das suas paisagens. A Ilha dos Amores está entre os atractivos mais badalados e pode ser avistada na zona da praia fluvial do Castelo, na foz do rio Paiva. Apesar da ameaça de chuva, justifica-se o desvio, não só para avistar a ilha, mas também para engrossar a lista de pontos de paragem obrigatória para dias quentes.
Inspiração para produzir bons vinhos
São poucos minutos de estrada, mas, curiosamente, já dá direito a atravessar os limites do concelho e, inclusive, do distrito. “Souselo já pertence a Cinfães, que é distrito de Viseu, mas faz parte da sub-região do Paiva”, enquadra Filipe Sales, um dos grandes responsáveis pela produção dos vinhos Inspirar. Naquela manhã, viviam-se momentos de azáfama na adega, fruto da inesperada antecipação das vindimas, porém, isso não foi impedimento para que as portas – e as garrafas – se abrissem.
A marca, que nasceu do sonho de Albino Sales, pai de Filipe, é relativamente recente – a primeira colheita data de 2017 –, mas os seus vinhos já vão somando algumas distinções. Grande parte do sucesso, nota o produtor, fica a dever-se ao acompanhamento técnico que é feito “da uva até chegar ao vinho”. Tanto assim é que a marca não garante a produção anual dos seus monocastas, o Inspirar Arinto e o Inspirar Avesso. “Se sentirmos que a produção não tem a qualidade definida nos nossos parâmetros, não o produzimos”, destaca Filipe.
É com a colheita de 2022 do Inspirar Branco Escolha, blend de trajadura, loureiro, arinto e avesso, que Filipe Sales dá início à prova em adega, acompanhada com queijos, enchidos, azeitonas, broa e azeite de produção própria, terminando com o Arinto 2020.
Boa parte de quem ali chega para provar os vinhos da casa vem das duas unidades de alojamento de que é proprietária, a Douro Green Country House e o hotel rural Quinta do Aido – a primeira plantada à beira do rio e a segunda de frente para a adega, rodeada de vinhas. Mas também há quem ali chegue vindo de outros pontos, apenas com o intuito de conhecer um pouco melhor os Verdes que vão sendo produzidos nestes quatro hectares de vinha, que, anuncia Filipe Sales, hão-de crescer para os “cinco hectares”.
O médico que ousou quebrar a tradição
De volta ao território de Castelo de Paiva, mas sem desviar a atenção dos vinhos, na Casa de Algar, em Santa Maria de Sardoura, os portões abrem-se para contar uma história de pioneirismo e desvendar um futuro que promete ficar marcado por algumas novidades. Foi naquela propriedade que, na década de 1960, se terão começado a produzir os primeiros brancos da sub-região.
“Castelo de Paiva só produzia vinho tinto, mas o meu sogro resolveu começar a produzir branco, apesar de toda a gente ter dito que ele era maluco”, conta Alberto Guedes da Costa, sócio-gerente da empresa que produz os vinhos Pata da Burra, evocando a ousadia do médico Amorim Crava. Terá sido inspirado pelas influências que ia absorvendo de todos aqueles que iam passando pelas Termas de São Vicente, onde era médico, mas a verdade é que acabou por antecipar a tendência que viria a ser implementada na região.
Na década de 1990, após o falecimento de Amorim Crava, os herdeiros deram início a um novo capítulo na história da Casa de Algar, reconvertendo as vinhas da propriedade. Actualmente, são 10,5 hectares, a partir das quais são produzidas seis referências (quatro brancos, um rosé e um tinto), com algumas novidades em perspectiva. “O futuro vai passar por vender vinhos mais velhos, envelhecidos em garrafa”, introduz o enólogo Jorge Sousa Pinto. Na calha está o lançamento, já em 2024, de uma outra gama, com “vinhos de topo”, anuncia, antes de dar início à prova do Pata da Burra Escolha 2022 e do Pata da Burra Premium 2021.
O programa de acolhimento aos turistas inclui visita à vinha e à adega da propriedade, que também já conta com uma casa aberta a hóspedes. Tem seis quartos, está localizada dentro da quinta, num edifício que foi reconstruído após os incêndios de 2017, e combina o estilo rústico com o moderno. Sem dúvida, uma boa forma de aproveitar o que o campo tem de melhor.
À mesa na casa de amigos que virou restaurante
Podia ser mais uma casa de pedra perdida no meio de uma aldeia, mas o cheiro libertado pelos tabuleiros que vão saindo do forno a lenha encarrega-se de anunciar que é morada de bem comer. Assim é há “25 anos ou mais”, por iniciativa de um paivense, o senhor Fontes, que gostava de receber os amigos à mesa e acabou por ser pressionado a abrir um restaurante. O nome, a registar: Dona Amélia.
“Isto era uma quinta isolada, ele fazia aqui as suas patuscadas. Por influência dos amigos, acabou por abrir este restaurante, alargando o seu leque de amigos”, conta António Moreira, actual proprietário do Dona Amélia, juntamente com a mulher, Elisabete Fontes, sobrinha e afilhada do fundador do espaço.
Passados todos estes anos, o restaurante com vista para o Paiva – esplanada panorâmica incluída – orgulha-se de ter amigos um pouco por todo o país e também pelo mundo fora, e recusa-se a abdicar do carácter familiar. “É um projecto acarinhado por toda a família”, assevera o actual proprietário da casa que foi buscar o nome “à mãe do senhor Fontes, a matriarca da família”.
A ementa é composta, essencialmente, por pratos tradicionais, feitos em forno a lenha. Cabrito, anho, galo, cabidela, posta de vitela, bacalhau e polvo lideram a lista, que poupa nas entradas para dar o devido destaque ao prato principal.
“O senhor Fontes dizia que as entradas tiram apetite para o prato principal”, enquadra António Moreira, na altura em que faz chegar à mesa um prato com queijos e enchidos, que abrirá caminho ao bacalhau assado e à posta de vitela grelhada. Para acompanhar, um vinho produzido na casa: um vinhão servido em tigela, como manda a tradição. E, para adoçar a boca, as três principais sobremesas da lista: leite-creme queimado na hora, pudim de ovos e pão-de-ló regional.
Conceição Nunes, cozinheira do Dona Amélia desde os primórdios, explica o sucesso das receitas da casa: os ingredientes “de qualidade” e o forno a lenha. O segredo, dizemos nós, está na simplicidade, à semelhança do que acontece com o território em redor. Sem grandes adornos, mas preservando as dádivas da natureza, tanto Castelo de Paiva como Marco de Canavezes cativam pela sua naturalidade. Sem segredos.
Este artigo foi publicado no n.º 10 da revista Singular.