Um Nobel para a perseverança

O trabalho dos cientistas que descobriram como usar o RNA-mensageiro para produzir vacinas salvou milhões de vidas – mas, durante muito tempo, foi considerado de pouca importância na própria ciência.

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Nunca imaginámos que, após três anos do início da pandemia, pudéssemos estar a viver de uma forma tão “normal”. Tal só foi possível graças às vacinas de RNA, produzidas em tempo recorde, porque já havia décadas de investigação fundamental no tema. Por isso mesmo, o Prémio Nobel da Fisiologia Medicina atribuído aos investigadores Katalin Karikó e Drew Weissman faz-nos lembrar como a ciência fundamental é crucial para grandes avanços científicos.

A vacina de RNA para a covid-19 permitiu salvar milhões de vidas. Mas desengane-se quem pensa que esta descoberta foi feita muito rapidamente. Não foi. Há mais de 30 anos que se começou a estudar a molécula de RNA para ser utilizada numa potencial vacina. No entanto, devido à natureza instável desta molécula, comparativamente com DNA, foram inicialmente encontradas grandes limitações: o nosso sistema imunitário reconhecia o mRNA da vacina como estranho, levando à sua destruição. A grande mudança aconteceu quando Karikó e Weissman, após anos de trabalho, conseguiram tornar as moléculas de mRNA invisíveis ao nosso sistema imunitário, evitando a sua destruição imediata.

As vacinas de RNA mostraram ser altamente eficazes em proteger contra doenças, não contêm o vírus real enfraquecido ou atenuado, podem ser desenvolvidas mais rapidamente do que as tradicionais, e não afectam o nosso código genético. A mesma plataforma de RNA pode ser adaptada para combater diferentes vírus, o que significa que essa tecnologia pode ser usada para enfrentar futuras ameaças virais.

Karikó nasceu na Hungria em 1955. Fez o seu doutoramento em Bioquímica na Universidade de Szeged, no seu país natal, e foi contratada pela Universidade da Pensilvânia no final da década de 1980, para trabalhar em RNA mensageiro – o mRNA. Após várias tentativas mal-sucedidas de conseguir financiamento para os seus projetos de investigação, foi despromovida. Ninguém acreditava que a sua investigação em coronavírus causadores de constipações suaves pudesse ter algum interesse. Vivia por isso numa precariedade constante.

No final da década de 1990, começou a trabalhar com o imunologista Drew Weissman, também da Universidade da Pensilvânia. Karikó produzia diferentes RNA, e Weissman testava a resposta do sistema imunitário. O trabalho foi finalmente publicado numa revista científica em 2005, não tendo tido o impacto que merecia. No entanto, sem esta grande descoberta, não teria sido possível à indústria farmacêutica produzir uma vacina eficiente e segura em tão pouco tempo.

A atribuição deste Prémio Nobel, bem como daquele atribuído em 2020 às cientistas Jeniffer Doudna e Emanuelle Charpentier, vem demonstrar como a investigação básica em RNA é o alicerce para o desenvolvimento de ferramentas úteis nas áreas da biomedicina, por exemplo, acelerando a resposta a futuras epidemias ou pandemias, ou sustentabilidade, como a construção de moléculas de RNA que poderão servir como inseticidas para aniquilar um determinado inseto/praga sem afetar o restante meio à sua volta.

Consideramos que este é o Nobel da perseverança, uma vez que Karikó levou muitos anos a obter reconhecimento e financiamento para a sua investigação – algo que só aconteceu de facto com a pandemia covid-19. A sua persistência permitiu que as vacinas de RNA, tal como as conhecemos hoje, existissem. Graças ao trabalho dos dois investigadores, a comunidade científica esteve preparada para reagir imediatamente a um novo vírus que originou uma crise pandémica. Graças à ciência fundamental temos ferramentas para responder rapidamente aos momentos inesperados de crise. O seu financiamento é sempre um desafio, e tem diminuído nos últimos anos. Esperemos que o Governo português use agora oportunidades como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para apoiar a investigação básica, e reduzir a multidão de investigadores portugueses em precariedade...

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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