Uvas verdes, monges e invasões francesas: à mesa com o historiador

Gonçalo Maia Marques, doutorado em História pela Universidade do Porto, escolheu a mesa do Mosteiro de Santa Maria de Bouro para nos falar da história do vinho e dos mosteiros do Entre Douro e Minho.

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Para uma conversa à mesa sobre a história do vinho na região Entre Douro e Minho, Gonçalo Maia Marques (dir.) escolheu o Mosteiro de Santa Maria de Bouro pela ligação ancestral à produção vinícola.
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Gonçalo Maia Marques tem-se dedicado com particular incidência ao estudo e investigação nos domínios do património cultural vitivinícola. Portanto, não foi só pelo simbolismo e pelo exemplar restauro do edifício que escolheu o convento de Santa Maria de Bouro, em Amares. “Sabia que o domínio deste mosteiro ia até ao vale da Vilariça? Santa Comba da Vilariça estava na dependência de Bouro.” É vasto também o domínio deste docente de História nas matérias que se cruzam com o cultivo e a produção de vinho no território que é hoje a região dos Vinhos Verdes. Sobretudo a partir da queda do império romano, que classifica como a fase embrionária do monaquismo.

Foi, de facto, com os mosteiros e as ordens religiosas que se desenvolveu a vinha e a produção de vinho como actividade económica. Até com registos e contabilidade, que é o que permite agora aos historiadores perceber como tudo foi acontecendo. É nessa fase embrionária que regista o aparecimento das pequenas comunidades lideradas por bispos, como São Frutuoso e São Rosendo, e depois os bispos-abades de origem celta e irlandesa, onde emerge a figura de São Martinho de Dume.

Seguiu-se uma primeira ligação do território ao reino de Leão, “mesmo durante o domínio árabe, nos séculos VII a X, a vinha era tolerada e continuava a dar rendimento às instituições monásticas”, mas é com a chegada dos cavaleiros da Borgonha que a produção de vinho ganha verdadeira importância económica.

“Vieram para apoiar o reino de Leão, os avós de Afonso Henriques, na reconquista, mas em apoio das ordens militares vem também a ordem de Cluny. É com ela que se reconvertem depois conventos e mosteiros de famílias patronais a conventos beneditinos, de Cluny e Cister, e criam novas fundações. São os responsáveis por duas grandes reformas: por um lado a do conhecimento intelectual, por outro a chamada reforma de Cister, ligada ao trabalho agrícola e manual.”

Gonçalo Marques lembra que foram os mosteiros os primeiros a trabalhar a paisagem agrícola, a procurar as zonas mais férteis, irrigadas e a meia encosta, para a produção dos vinhos e lançar o cultivo da oliveira. “Estamos nos séculos XII e XIII, em contexto da fundação, que é quando Santa Maria de Bouro obtém carta de couto de D. Afonso Henriques”, anota.

É neste contexto que, no Entre Douro e Minho, se desenvolve o cultivo da vinha. Os vinhos do Minho ganham fama de grande qualidade e começam a ser exportados, sobretudo para a Flandres e Inglaterra. Tanto que os ingleses abrem uma feitoria no porto de Viana de Castelo para exportar os que então chamavam vinhos de Viana.

A par dos vinhos de qualidade, cultivados nas melhores terras e parcelas, iam sendo produzidos outros nas árvores e bordaduras, mais verdes e de menor qualidade, destinados ao consumo do povo.

“Desde sempre que na região se produziram vinhos maduros e verdes. Os maduros, das uvas de melhor qualidade, para comercializar, e os verdes, aqueles que tinham dificuldade em amadurecer, para o consumo do povo. Consegui perceber isso com clareza quando estudei a época moderna, os séculos XV a XVIII. Os conventos registavam a produção e as existências, tanto de vinhos verdes como de vinhos maduros. Está tudo nos Estados Gerais da Ordem de São Bento, relatórios trianuais de cada mosteiro que eram apresentados ao Capítulo Geral em Tibães”, explica Gonçalo Maia Marques, reportando-se ao material que apresentou na sua tese doutoramento.

O mosteiro de Santa Maria de Bouro, em Amares, foi recuperado sob traço de Eduardo Souto de Moura. Maria João Gala
O branco de loureiro Quinta d'Amares, equilibrado e gastronómico, foi um dos vinhos que acompanharam o almoço. Maria João Gala
Bacalhau à moda do convento, um dos pratos da chef Conceição Cunha, no restaurante Antiga Cozinha do Mosteiro de Amares Maria João Gala
Sala do restaurante Antiga Cozinha do Mosteiro de Amares Maria João Gala
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O mosteiro de Santa Maria de Bouro, em Amares, foi recuperado sob traço de Eduardo Souto de Moura. Maria João Gala

A camisa-de-forças do Vinho Verde

E se os vinhos verdes eram aquele a que o povo tinha acesso, a que se habituou, os vinhos maduros da região foram perdendo importância. Consequência, sobretudo, da chamada “revolução do milho”, a chegada do milho grosso da América, a partir do século XVI, muito produtivo e rentável, que foi empurrando a vinha para as bordaduras. Com isto cai a procura, os exportadores começam a descobrir os vinhos do Douro e os privilégios concedidos pelo Marquês do Pombal à Companhia do Alto Douro acabaram por pôr fim à feitoria de Viana.

É certo que os mosteiros ainda procuraram formas de melhorar os vinhos de bordadura. Da introdução e apuramento de castas mais adaptadas – casos de alvarinho e loureiro – às ramadas para melhorar a exposição solar, houve um processo longo de estudo e experimentação, mas que veio a ser desbaratado com as invasões francesas. “Principalmente a segunda, em 1809, quando ocupam os mosteiros e destroem documentos e património. E é com os mosteiros fragilizados que vem logo a seguir a revolução liberal e o encerramento dos mosteiros.”

Gonçalo Maia Marques conclui, por isso, que desse trabalho de aperfeiçoamento de castas e cultivo da vinha se terá salvado apenas o conhecimento adquirido por alguns trabalhadores e caseiros, que depois o aplicaram nas quintas compradas aos territórios dos mosteiros, onde em muitos casos perseguiram o propósito de continuar a fazer vinhos maduros.

O historiador recorre à imagem de um colete-de-forças para explicar o contexto em que se foi institucionalizando o conceito de vinho verde. “Só com o movimento de regeneração, em 1852, é que acalma a turbulência gerada com a revolução liberal. O país começa então a olhar para as regiões e, no início do século XX, com a carta de lei de 1908, João Franco deixa praticamente concluído o mapa vitivinícola. Só que no Entre Douro e Minho ficou mais ligado às características do consumo local do que ao território. E isso tem funcionado como uma camisa-de-forças em que meteram a região. Um conceito muito ligado ao localismo folclórico, ao estereótipo que foi fomentado pelo Estado Novo. O vinho na malga, o sustento do povo, a tradição de convivialidade como fomento do turismo interno.”

O investigador histórico entende que só com a entrada na CEE foi possível começar a criar condições para começar a dar a volta ao conceito. “Voltou-se ao espírito pré-invasões francesas, ao estudo e experimentalismo das ordens. A aposta na qualidade e na exportação dos vinhos, com base na formação estudo e conhecimento.”

Como consequência, aí está a aposta nas castas mais adaptadas às conduções da região, o predomínio absoluto das brancas e a explosão as exportações. A produção voltou-se para os vinhos maduros. Verde, mesmo, é a região. Os vinhos, cada vez menos.

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“Desde sempre que na região se produziram vinhos maduros e verdes", esclarece o historiador. Com a aposta das últimas décadas na qualidade, as uvas mal maturadas ficaram no passado, mas o conceito "tem funcionado como uma camisa-de-forças em que meteram a região". Maria João Gala

À MESA

Antiga Cozinha do Mosteiro de Amares
Pousada do Mosteiro de Santa Maria de Bouro
Largo do Terreiro, Bouro (Amares)

Refeição: Minirrissóis de camarão; Salada de polvo; Queijo fresco com doce de abóbora; Polvo laminado; Bacalhau à moda do convento; Trilogia de doçaria regional

Vinhos: Encostas da Abadia Escolha branco, Quinta D’Amares Loureiro


Este artigo foi publicado no n.º 10 da revista Singular.

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