Até que a morte as reúna
As histórias que se contam de quem morre mudam a vida de quem vive.
“As histórias são organismos genuinamente simbióticos com os quais vivemos, que permitem aos seres humanos avançar.” (Neil Gaiman)
Estavam dispersas. Em risco de poroso olvido. Haviam nascido e vivido em relação. Contavam-se. Antes, isso era antes. Como a chuva do Camilo José Cela, não há muitas horas, mas há muitos anos. À custa de, apesar de em vida, não serem contadas, pouco pareciam contar. E ao não serem contadas parecia a relação, e os seus protagonistas, pouco haver contado. Rareavam-se as palavras que as faziam, que as criavam. Outrora propagadas, esquissos surdamente balbuciados pareciam agora ser. Emudecidas. Como que mortas.
A morte de alguém próximo pode constituir-se como o que se define por acontecimento vital, entendido como evento capaz de gerar mudança saliente na trajectória de vida da pessoa que experiencia a perda.
As histórias que se contam de quem morre mudam a vida de quem vive. A evocação episódica do vivido permite a quem narra e a quem (próximo) escuta integrar a perda, construir-lhe, ao vivido, e a si um novo significado. As histórias contêm personagens que sentiram emoções, elaboraram pensamentos, se comportaram de um dado modo, com intuitos (expressos ou intuídos), com consequências diversas para os intervenientes. Atestam a realidade, porque surgidas no contexto de uma relação, porque em relação se partilham e reconstroem.
As histórias são feitas de palavras e a palavra luto é não apenas substantivo, mas também forma verbal (da primeira pessoa do presente do indicativo — primeiro, a pessoa; presente, também como dom; indica, também o futuro). E se ambas têm subjacente a acção e implicam processo, ainda que idiossincráticas, não têm, não devem ser operadas individualmente.
A “luta” no luto requer a partilha de histórias de quem se perdeu (e apenas perda é pelo quanto com a sua vida se ganhou) e essa partilha tem o potencial de recriar relações, construir e estreitar rede e de recriar-se a si. Contrapor o poroso olvido com a elaboração mnésica que o narrar de histórias, que exige interlocutor(es), permite. Como na passagem de Kundera em A Identidade: “A amizade é indispensável ao homem para o bom funcionamento da sua memória. Lembrar-se do passado, trazê-lo sempre consigo, é talvez a condição para se conservar, como se costuma dizer, a integridade do eu. Para que o eu não encolha, para que mantenha o seu volume, é preciso regar as recordações como as flores de um vaso, e essa rega exige um contacto regular com testemunhas do passado, isto é, com amigos. Eles são o nosso espelho, a nossa memória”.
Se necessário é esse “espelho” em vida, no luto por morte de alguém próximo é imperativo. Porque as histórias contam. E os seus protagonistas. Se “no princípio era o Verbo”, durante e no fim são as Histórias.