Armas da morte: por dentro de uma rede terrorista de adolescentes
Uma rede de jovens neonazis criou células na Europa e nos EUA com o objectivo de levar a cabo ataques armados. Durante um ano, repórteres de vários jornais investigaram estas movimentações.
Quando Lukas F. entra num antigo quartel do Exército no Verão de 2021, num exercício do seu treino para se tornar um terrorista, tem apenas 16 anos, um rapaz magro e de cabelo escuro.
As instalações estão situadas a cerca de 45 minutos do centro de Potsdam, uma cidade a sudoeste de Berlim, na Alemanha. Foram utilizadas pela Wehrmacht, as forças regulares do Exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial, e mais tarde pelos soviéticos. Nas redondezas existem alguns lagos, muito apreciados pelos nadadores.
O ribombar de um trovão ecoa pelo pátio, uma bola de fogo brilha. Uma bomba explode, depois uma segunda.
Lukas F. filma as explosões com o seu telemóvel. Alguns meses antes fundara um grupo para jovens neonazis de múltiplos países que acham que estão a lutar numa “guerra racial”. No seu chat online Lukas F. (nome falso usado para proteger a sua identidade enquanto menor de idade) descreve estas bombas como um teste para o grupo.
Lukas F. faz parte de uma rede de jovens de todo o mundo, adolescentes que trocam ideias de extrema-direita, propaganda nazi e vídeos de ataques e que, fazendo isso, se incitam uns aos outros até ao ponto de alguns deles acreditarem que devem pegar em armas contra a ordem liberal.
Existem dúzias de grupos como este, ligados numa rede internacional que se estende desde a Costa Oeste dos Estados Unidos e a Europa Ocidental até aos mais remotos cantos dos Estados bálticos.
Os grupos ostentam nomes bélicos, inspirados pela propaganda dos nacionais-socialistas. O mais destacado deles em termos de número de membros autodenomina-se “Feuerkrieg Division (FKD)”, ou “Divisão Guerra de Fogo”. Lukas F., de Potsdam, agora com 17 anos, não é apenas um seguidor: criou o seu próprio grupo, intimamente ligado à rede, e a que chamou “Totenwaffen”, ou “Armas da Morte”.
Repórteres do Welt am Sonntag, do Politico e do Insider passaram mais de um ano a investigar o interior desta rede terrorista de extrema-direita. Usando falsas identidades, obtiveram acesso a cerca de duas dúzias dos seus grupos de chat, falaram com participantes dessas conversas, e conseguiram copiar mais de 98 mil mensagens, incluindo fotografias e vídeos. Ao longo deste tempo, também descobriram listas de alvos a abater, ameaças de morte contra políticos e jornalistas, e instruções para fazer bombas e usar impressoras 3D para produzir partes de armas.
Ao longo desta investigação, as equipas editoriais conseguiram identificar a verdadeira identidade de alguns dos membros do grupo, incluindo a de Lukas F., que se escondia por trás de pseudónimos que estava sempre a mudar. O seu caso demonstra como adolescentes tão novos podem ficar tão radicalizados ao ponto de falarem em cometer assassínios. Também revela o papel desempenhado pela rede de apoio, e as razões pelas quais os serviços de segurança têm tantas dificuldades em a desmantelar.
Viagem de estudo a Sachsenhausen
Segundo fontes do seu círculo íntimo, Lukas F. nasceu na Bielorrússia. A sua mãe é bielorrussa, o seu pai é cazaque de origem alemã. A família mudou-se para Potsdam quando Lukas F. era ainda bebé; mais tarde nasceram mais dois irmãos. Ainda hoje Lukas partilha um quarto com um deles na casa dos seus pais, num bloco de apartamentos no centro de Potsdam.
Existem na Internet fotografias da infância de Lukas F., lá postas pelos seus familiares. Festas de aniversário com copos de plástico, umas férias em família na Polónia, avôs orgulhosos. Numa dessas fotografias Lukas F. está sentado num veículo militar com um dos seus irmãos e o pai. Uma fonte desta investigação contou que a família tinha ido a um campo de tiro quando estavam de férias na Bielorrússia, tendo os meninos também sido autorizados a disparar.
A família ainda tem parentes na Bielorrússia e há indicações de que possuem uma casa lá. Lukas F. escreveu que mantinha lá uma arma de fogo, o que uma pessoa ligada a ele afirma ser simplesmente uma espingarda de pressão de ar pertencente à família.
Em Potsdam, Lukas F. frequentou uma escola secundária onde, de acordo com vários funcionários escolares, não se destacava pelo seu empenho. No entanto, certa vez ofereceu-se como voluntário para guia de uma exposição da escola, contam. A exposição abordava o extremismo de direita, e a função de Lukas F. era explicar aos visitantes os símbolos de extrema-direita colocados num expositor.
Ainda muito novo, de acordo com uma fonte, Lukas F. estava muitas vezes no seu computador e passava muito tempo no Discord, uma rede social para fãs de videojogos. Aí, eles e outros membros da rede insultavam homossexuais e lésbicas.
Aos 15 anos Lukas F. foi numa visita de estudo ao campo de concentração de Sachsenhausen. O objectivo destas visitas é ensinar às crianças acerca das atrocidades dos nazis e dos perigos da ideologia nazi. Mas, como disse o seu irmão aos jornalistas, para Lukas F. a visita ao campo de concentração foi um ponto de viragem. Quando chegou a casa, mudou o fundo do ecrã do seu computador portátil para uma suástica.
Mais tarde Lukas F. escreveu que pela primeira vez tinha tido consciência do seu “ódio” quando tinha 14 ou 15 anos. “Ao princípio eu não quero ser verdade, que sou um nacional-socialista. Mas agora estou a lutar por isto [sic]”. No seu grupo de chat descreve o Holocausto como uma “purga” e diz que não consegue perceber como há pessoas que acham que não aconteceu. “É real e está certo.”
A determinada altura Lukas F. criou um perfil numa rede social russa. Na fotografia desse perfil surge vestido com camuflado, a cara tapada com uma máscara de esqueleto. No topo da página escreveu “Cobrir o Mundo com um banho de sangue”. Os seus pais são seus “amigos” nesta rede, mas não há razões para pensar que partilham as ideias do seu filho. E Lukas F. até escreve a dado ponto: “Infelizmente, o meu pai é comunista.”
O ideólogo dos Estados Unidos
Para percebermos o que poderá passar pela cabeça de jovens como Lukas F. precisamos de recuar uns anos e ir até ao outro lado do oceano Atlântico, ao estado norte-americano do Colorado, onde reside James Mason, agora com 69 anos. Mason aderiu a um partido nazi americano quando tinha apenas 14 anos. Dois anos mais tarde já estava a fazer planos para assassinar o seu director de turma, mas acabou por não os concretizar. Na rede a que Lukas F. pertence, o livro Siege, escrito por Mason, é considerado uma leitura fundamental. Para muitos jovens extremistas de direita é até mais importante do que o Mein Kampf, de Adolf Hitler.
No seu livro, Mason apela a que se afunde a sociedade liberal numa guerra civil. Isto não exige a criação de organizações de massas, escreve; apenas é necessário que assassinos individualmente ou pequenas células levem a cabo ataques às infra-estruturas, aos políticos ou a membros de minorias. Isto irá conduzir ao caos e preparar o caminho para uma revolução de extrema-direita.
Mason e as suas ideias ganharam muitos seguidores nos últimos anos: grupos, células e indivíduos, na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos.
Investigadores na área do extremismo denominam esta estratégia como “aceleracionismo militante”. Thomas Haldenwang, director do Gabinete Federal para a Defesa da Constituição da Alemanha, declarou aos jornalistas que a ideologia de Siege está também a ganhar cada vez mais terreno na Alemanha. “Os jovens em especial, alguns deles ainda menores de idade, estão a tornar-se seguidores. Já não é assim tão difícil encontrar menores a defender a violência ou mesmo a planear eles próprios actos de violência.”
A lista de ataques ligados a esta ideologia cresce de ano para ano, nela se incluindo os disparos no centro comercial Olympia, em Munique, em 2016, e o ataque, em 2019, a uma sinagoga e uma loja de kebabs em Halle. Os atacantes são apresentados como heróis nos chats da rede, e a contagem das suas vítimas é transformada num concurso, sendo declarado vencedor aquele que matar mais pessoas.
Fábrica de armas no quarto
No Verão de 2020, alguns meses após a sua visita a Sachsenhausen, Lukas F. deixou a escola secundária de Potsdam e iniciou um estágio profissional. Em Novembro de 2020 fundou um grupo de chat no serviço de mensagens Telegram e chamou-lhe “Totenwaffen”. Os seus membros incluem alguns indivíduos com as mesmas tendências que ele conhecera através das plataformas de videojogos do Discord e Roblox. Lukas F. tornou-se o líder do grupo — o seu Führer.
Entre Novembro de 2020 e Maio de 2021, quase 100 utilizadores colocaram mensagens no grupo Totenwaffen. Provinham de muitos países, incluindo a Estónia, França e Estados Unidos, e conversavam uns com os outros em inglês. Adoptaram nomes como Maschinengewehr [Metralhadora], Kriegsman [Homem de Guerra] e Joseph Goebbels Gaming.
No Telegram não existem restrições, pelo que os membros do grupo podem partilhar sem problemas imagens de cabeças decepadas.
Estes adolescentes já se afastaram dos videojogos. No final de Novembro, Lukas F. escreveu: “Lembro-me quando disse ‘vamos fazer disto um grupo terrorista a sério’ [sic].” E acrescenta que “mais membros do grupo votaram a favor da ideia do que contra”.
Nesse mesmo dia, um rapaz utilizando o pseudónimo Edward colocou uma fotografia no chat. Mostrava uma pistola-metralhadora MP40 a apontar para um chão de madeira. Esta era a arma geralmente utilizada pela Wehrmacht de Hitler.
A resposta de Lukas F.: “Fixe.”
Através das suas pegadas digitais, Edward pôde ser identificado como um neonazi a viver na Roménia. No final de 2020 tinha apenas 13 anos. Durante algum tempo pareceu ser uma espécie de melhor amigo de Lukas F., um irmão mais novo. Ele e um utilizador da Polónia que assinava “Gas Jews” [Gaseiem os Judeus], aparentemente de 11 anos, estiveram entre os primeiros a juntar-se ao grupo de chat de Lukas F. Mais tarde Lukas F. descreveu o grupo Totenwaffen como uma “organização adolescente”, uma espécie de unidade juvenil.
Em breve era exigido que os novos membros do grupo efectuassem um juramento, prometendo que iriam obedecer às ordens da liderança. Isto não tem a forma de uma cerimónia solene à luz de tochas, mas sim fazer copy and paste de uma simples mensagem no chat. Os novos membros também têm de dizer se leram o livro de Mason, Siege. Para os que ainda não o fizeram, a versão em áudio é partilhada no chat. Tem a duração de 22 horas e 33 minutos.
Elementos do grupo louvam o terrorista de extrema-direita que matou 51 pessoas em duas mesquitas na cidade neozelandesa de Christchurch em 2019: “Tarrant é uma lenda.”
Veneram Anders Breivik, o terrorista de extrema-direita que assassinou 77 pessoas em Oslo e na ilha de veraneio de Utoya em 2011. Um deles chama-lhe “santo”.
Dois dias após Edward ter publicado a sua fotografia da metralhadora, a sua cabeça virou-se para a compra de mais armas. Escreveu que queria uma impressora 3D, para construir espingardas com ela. Lukas F. sugeriu alguns modelos que poderiam ser adequados.
Numa mensagem publicada em Dezembro de 2020 Lukas F. deixou claro que ele mesmo estaria pronto para passar à ação: “Aposto que por vezes fico tão furioso que vou colocar uma bomba no próximo sítio onde a Jewgela fizer um discurso.” Mais tarde clarificou: “Jewgela” refere-se à ex-chanceler Angela Merkel, um trocadilho anti-semítico com o seu nome próprio.
No final de Fevereiro de 2021, Lukas F. estava a fazer para si próprio um uniforme, para usar num vídeo de propaganda que andava a preparar há meses. Publicou uma série de fotografias em que aparecia a cortar uma suástica num pedaço de cartão para usar como modelo. “Agora preciso de pintá-la”, escreveu. Segue-se uma fotografia de latas de tinta em spray, e depois uma de um pedaço de tecido vermelho com um círculo branco e uma suástica preta pintada nele. No mesmo dia Lukas F. publicou uma imagem de si próprio com a suástica a fazer de braçadeira, no seu quarto em Potsdam.
Numa noite no início de Março, Lukas F. saiu a espalhar a sua propaganda em Potsdam. Colou um poster com as palavras “Revolta contra o sistema judeu”.
Os guerreiros do fogo
Para percebermos como funciona esta rede de terroristas adolescentes, basta olhar para a Estónia.
No final de 2018, um jovem residente na ilha estoniana de Saaremaa criou um grupo de extrema-direita. Chamou-lhe “Feuerkrieg Division” (“Divisão Guerra de Fogo”), e atribuiu a si mesmo o título de “comandante”. Tinha apenas 11 anos. O grupo cresceu, com membros de todo o mundo.
Estes elementos, na sua maioria adolescentes ou jovens adultos, conversam acerca das suas fantasias de morte, muitas vezes detalhadamente. Está provado que a Divisão Guerra de Fogo está por trás de uma longa lista de ataques, planeados ou concretizados, um pouco por todo o mundo.
Estados Unidos, 2019: Conor Climo, de 23 anos, é preso em Las Vegas por planear ataques a uma sinagoga e um bar de homossexuais. É condenado a dois anos de prisão.
Reino Unido, 2019: A polícia detém Paul Dunleavy, de 16 anos, quando este anda à procura de uma arma de fogo. Tem planeado ataques terroristas. É condenado a cinco anos e seis meses de prisão.
Estados Unidos, 2019: Jarett William Smith, um soldado do Kansas, é preso por planear um ataque a uma estação televisiva de notícias. É condenado a 30 meses de prisão.
Lituânia, 2019: Gediminas Berzinskas, de 20 anos, é detido em Vílnius após ter tentado fazer explodir um edifício de escritórios. É condenado a dois anos e quatro meses de prisão.
Reino Unido, 2019: Luke Hunter, de 21 anos, incita a ataques terroristas. É condenado a quatro anos e dois meses de prisão.
Alemanha, 2020: no distrito de Cham, forças especiais prendem Fabian D., um electricista de 22 anos, no seu local de trabalho, por tentar construir uma espingarda de assalto para usar em ataques. É condenado a dois anos de prisão.
Todos estes jovens era membros da Divisão Guerra de Fogo, que foi classificada como uma ameaça séria por forças de segurança de todo o mundo. No Reino Unido, em 2020, foi considerada um grupo terrorista e outros países seguiram este exemplo. Também é referida no último relatório anual da Agência Federal de Segurança Interna da Alemanha.
A Divisão Guerra de Fogo é a maior fonte de inspiração de Lukas F. Refere-se a ela frequentemente no grupo de chat do Totenwaffen. Em Março de 2021, por exemplo, escreveu que o grupo precisava do seu próprio logótipo, e que este deveria basear-se no da Divisão Guerra de Fogo — um crânio.
Uma batalha desigual
Para as autoridades estatais, esta batalha não é equilibrada. Grupos desaparecem, e logo reaparecem. Nomes de grupos e pseudónimos são recuperados e reutilizados. As ligações entre os membros dos grupos derivam mais de uma ideologia partilhada do que de uma organização rígida. A força da rede reside no facto de não ser um grupo bem definido, mas simplesmente uma série de indivíduos vagamente interligados que podem estar em qualquer parte do mundo. Tudo o que precisam é de um computador, de um telemóvel e de um quarto. E tudo o que têm em comum é a sua ideologia e o seu ódio: ódio aos judeus, ódio aos políticos, ódio aos jornalistas.
De acordo com a Europol (Agência Europeia para a Cooperação Policial), é esta passagem de uma hierarquia definida para uma série de indivíduos vagamente interligados que torna tão difícil a perseguição a estes grupos: “Nestas situações complexas temos de lidar com indivíduos, pois um ou dois indivíduos a agir por sua própria iniciativa podem representar uma verdadeira ameaça.”
Miro Dittrich é um especialista em terrorismo de extrema-direita no Centro de Monitorização, Análise e Estratégia de Berlim, que acompanha de forma sistemática as comunicações de extrema-direita no Telegram. Afirma que demorou anos até que as autoridades começassem a levar a sério os espaços digitais, e que, ainda agora, existe uma falta de efectivos policiais. Isto permitiu que se aí se desenvolvesse, sem obstáculos, uma subcultura de terrorismo de extrema-direita — uma subcultura facilmente acessível a menores. “Os jovens estão a começar a ficar radicalizados muito novos”, explica. “Pelos 14 ou 15 anos muitas vezes já atingiram o pico de uma espiral de ódio.” A estratégia de células vagamente interligadas e atacantes isolados proposta por James Mason pode facilmente ser levada à prática por adolescentes.
Nas democracias surge também a questão da idade de responsabilidade criminal: as autoridades estonianas não puderam deter o jovem “comandante” da Divisão Guerra de Fogo (FKD), porque ele tinha apenas 13 anos. Em Fevereiro de 2020, após a polícia ter ido a casa do rapaz, a FKD anunciou a sua dissolução.
Mas um ano depois reapareceu, tanto em posters de propaganda e panfletos como no Telegram. Agora tinha um novo líder, outro adolescente da Estónia, ainda utilizando o pseudónimo de “comandante”. Qualquer pessoa pode ser substituída.
A “Ordem de Ferro”
Às 5h45 de 8 de Maio de 2021 Lukas F. escreveu no seu grupo que tinha andado a patrulhar. Partilhou algumas fotografias dos cartazes de propaganda do Totenwaffen que tinha andado a colar. Um deles consiste numa série de nomes de activistas judeus a favor dos direitos de pessoas transgénero. Por cima surgem as palavras “Morte a”.
Colara um destes cartazes no exterior da sua antiga escola, que deixara há cerca de um ano. Na manhã seguinte, quando os funcionários descobriram o poster, comunicaram esse facto e a polícia foi investigar. As autoridades abriram um processo relativo ao grupo Totenwaffen, mas parece que por essa altura ainda não sabiam que fora Lukas F. que o criara.
Menos de duas semanas depois, Lukas F. recebeu, na casa dos seus pais em Potsdam, uma quantidade de produtos químicos que encomendara: um quilo de enxofre, 250 gramas de magnésio em pó e outros do género, comprados na Amazon por menos de 60 euros. Estes eram os químicos que ele iria usar para construir as bombas que mais tarde iria testar no campo militar abandonado.
Alguns dias depois de Lukas F. ter publicado as fotografias dos seus produtos químicos no chat do Totenwaffen, anunciou uma nova coligação: “Tenho o prazer de ter a Divisão Guerra de Fogo ao nosso lado, Sieg Heil à nossa aliança!”
Mas ainda havia mais: o novo “comandante” da FKD é membro do grupo Totenwaffen, e as nossas investigações revelaram que ele estava em contacto directo com Lukas F.
Na altura a que nos referimos, a FKD estava a criar uma espécie de organização terrorista mais vasta sob o nome de “Ordem de Ferro”. Um documento interno de 2021, analisado pelos jornalistas que levaram a cabo esta investigação, inclui os símbolos de 11 grupos que se tinham afiliado. Descrevem-se como sendo “uma coligação nacional-socialista”.
Um deles era o Totenwaffen de Lukas F.
Muitos membros dos grupos da Ordem de Ferro estão activos em múltiplos grupos de chat. Trata-se de uma rede larga e as fronteiras são vagas. Lukas F., por exemplo, também publica no Inject Division, outro membro da coligação. O Inject Division foi fundado por um homem do Texas que foi preso em Maio de 2021, por estar a planear um ataque terrorista a uma loja da Walmart.
Investigações demoradas
Mais tarde, Lukas F. começou a pensar que também ele podia comprar uma arma de fogo. Um vendedor de armas enviou-lhe fotografias de duas e ele colocou-as no chat.
“A primeira ou a segunda?”, perguntou.
“Se comprares a primeira, pede também alguns carregadores de reserva”, respondeu Edward.
No Verão de 2021, a polícia de Brandeburgo, na Alemanha, recebeu uma indicação de uma outra agência. Pouco depois, agentes revistaram o apartamento da família e confiscaram o computador portátil e o telemóvel de Lukas F., juntamente com uma bandeira do partido nazi e produtos químicos que terão sobrado das suas experiências a construir bombas.
Os polícias levaram Lukas F. para a esquadra, interrogaram-no e libertaram-no. A apreensão dos seus equipamentos levou a que Lukas F. já não tivesse acesso aos seus grupos de chat. Edward substitui-o como líder do Totenwaffen. No Outono de 2021 também ele desapareceu, no que foi seguido pelo resto do grupo. Segundo um rumor que corre pelas várias salas de chat de extrema-direita, a mãe de Edward ter-lhe-á muito simplesmente tirado o telemóvel.
As investigações arrastaram-se durante meses. As pesquisas da nossa equipa de repórteres mostram que, na altura em que escrevemos [2022], a polícia ainda não obteve qualquer prova do local onde Lukas F. detonou as suas bombas. Uma das bombas reduziu uma base de betão a escombros, que ainda lá se encontram. E a escola a que Lukas F. regressou naquela noite nunca foi avisada pela polícia dos potenciais perigos que corria, isto, apesar de a extrema-direita ter produzido vários atacantes de escolas.
Em Agosto de 2021, por exemplo, um jovem de 15 anos numa escola na cidade sueca de Eslöv esfaqueou um professor no estômago. Em Janeiro de 2022, um rapaz de 16 anos feriu um professor e outro estudante numa escola em Kristianstad, no Sul da Suécia, também com uma faca. Os dois adolescentes mantinham contactos entre eles — e documentos das investigações suecas mostram que eles se movimentavam nos mesmos círculos de Lukas F. Ambos se disfarçavam com balaclavas até ao pescoço com desenhos de maxilares inferiores. Esta máscara é usada por muitos membros da rede de Lukas F. e da rede mais alargada. Serve tanto de identificador como esconde a identidade do utilizador.
A resposta a uma questão de Martina Renner, do partido A Esquerda no Parlamento alemão, revelou que o Centro para a Prevenção do Extremismo e Terrorismo da República Federal Alemã, que engloba os serviços secretos e a polícia, abordou a questão do grupo Totenwaffen quatro vezes em 2021, e repetidas vezes em 2022. O conteúdo destas discussões mantém-se estritamente confidencial.
As investigações levadas a cabo pelas autoridades de Brandeburgo ainda não produziram quaisquer resultados.
Mas houve detenções noutros locais. De acordo com um relatório dos serviços secretos da Estónia, dois jovens com ligações à Divisão Guerra de Fogo foram presos naquele país báltico em Outubro de 2021. Informações recolhidas pelos jornalistas desta investigação revelam que um deles é o segundo “comandante”. Dois americanos tomaram conta do grupo, e um holandês fundou um grupo dissidente com o mesmo nome.
No final de Dezembro de 2021, quando as investigações ainda estavam a decorrer, Lukas F. apareceu novamente nos grupos de chat da rede. Estava a tentar contactar com Divisão Guerra de Fogo, e queria ser aceite num chat interno. Os repórteres tinham lido uma mensagem particular que ele enviara a um colega de confiança: “Tinha e continuo a ter grandes planos para o Totenwaffen.”
No início de 2022 devolveram a Lukas F. o seu telemóvel e computador portátil.
As autoridades de Brandeburgo envolvidas na investigação recusaram-se a responder a questões dos jornalistas relativamente a todo este processo. “O direito à informação por parte da imprensa”, respondeu o procurador da República local, “é limitado pelos interesses das pessoas em causa, que têm precedência e têm direito a protecção.”
A entrevista
Em Março de 2022 os repórteres contactaram Lukas F. Ele respondeu que não queria um encontro cara a cara, mas que os jornalistas podiam enviar-lhe perguntas por SMS.
Seguiu-se uma troca de mensagens, primeiro durante um dia inteiro, e depois ao longo de várias semanas. Explicou que cooperou com a polícia, quando revistaram a sua casa e que ele “infelizmente” lhes forneceu as suas palavas-passe — “porque a minha mãe me estava a pressionar”. Mas pelo menos agora sabe como se “esconder do governo”, escreve.
Mas não se tem conseguido esconder muito bem: em Abril encomendou um exemplar do manifesto de 35 mil palavras de Theodore Kaczynski, o “Unabomber”, que enviou pelo menos 16 encomendas armadilhadas pelo correio dos Estados Unidos entre 1978 e 1995, matando três pessoas. Nesse mesmo mês Lukas F. deixou online uma crítica ao manifesto… usando o seu nome completo.
O gabinete do procurador da República em Brandeburgo ainda continuava nesta altura o processo de investigações, mas não fez nada. Do seu ponto de vista, ele não constituía um perigo iminente. Nas suas mensagens aos jornalistas Lukas F. escreveu: “Estava pronto para fazer muita coisa.”
Que coisas?
“Sem comentários.”
Desde então, algo se alterou?
“Sem comentários.”
Questionado acerca das razões para ainda postar nos velhos chats, respondeu: “Conheço algumas das pessoas, são muito simpáticas, gosto delas.” Declarou que é um “nacionalista”. Poderia tentar o activismo legal, talvez até aderir a um partido. Mas primeiro ia ter de encontrar uma base de apoio. Disse que teve sempre de descobrir tudo por si próprio. Até fez o seu depoimento na polícia sem a presença de um advogado.
E se fosse formalmente acusado?
“Então estou lixado.”
Mais recentemente houve algumas movimentações entre as autoridades internacionais que estão encarregadas da investigação: pouco antes da Páscoa de 2022, um jovem de 15 anos foi preso na Dinamarca, acusado de pertencer à Divisão Guerra de Fogo. Pela mesma altura, vários elementos fundamentais da rede desapareceram e os canais de propaganda silenciaram-se. Desde então, tem havido um pouco menos de actividade nos grupos. Pessoas dentro do movimento presumem que vários dos seus camaradas terão sido presos na mesma altura, nos Estados Unidos e na Holanda. Mas novos grupos foram logo iniciados.
Visita a casa
No final de Maio deste ano, os repórteres tocaram à campainha da porta de um apartamento no 8.º andar de um bloco residencial no centro de Potsdam. A porta foi aberta pelos pais de Lukas F. A sua mãe é uma mulher baixinha e magra que sorri muito, mas fala pouco. O pai veste uma T-shirt de uma marca desportiva e faz todas as despesas da conversa, exigindo saber quem são estas pessoas e por que razão apareceram ali sem avisar.
Os jornalistas dizem-lhe que sabem acerca da rusga policial através dos chats. E que gostariam de falar com Lukas.
“Já estamos a conversar”, diz o pai, “mas ok…”, e desaparece no interior do apartamento. Momentos depois Lukas F. surge à porta. Tem agora 17 anos, está magro, quase desengonçado. Os olhos para baixo, o cabelo escuro cobre-lhe as orelhas.
“Não estou interessado”, diz, e bate com a porta. Mais tarde envia uma mensagem aos jornalistas, dizendo-lhes para nunca mais lá voltarem.
Nesse dia os seus pais também não dizem nada. Mais tarde escrevem a recusar o pedido dos repórteres para um encontro, embora respondam a algumas perguntas através de SMS. Nessas respostas, o pai de Lukas diz que o filho foi vítima da puberdade e das circunstâncias. Minimiza a questão: “Ele nunca fez mal a ninguém.” A mãe de Lukas responde em russo, dizendo que está chocada, horrorizada, e não consegue compreender que tudo isto esteja a acontecer.
Vários membros da família dizem-nos que naquele dia tinha havido uma discussão, e que o pai tinha deitado fora os livros nazis de Lukas, incluindo o Mein Kampf, afirmando que aquilo estava a estupidificá-lo.
No início de Junho, as autoridades de Brandeburgo passaram à acção. Uma unidade da polícia de choque prendeu Lukas F. no apartamento dos seus pais. Agora está preso algures em Märkisch-Oderland. O serviço de segurança do Estado classifica-o como perigoso, alguém que representa uma verdadeira ameaça. Os agentes continuam a investigar. Suspeitam que ele estaria a preparar um “sério acto de violência contra o Estado” — por outras palavras, um ataque terrorista.
Pouco depois, os jornalistas escreveram a Lukas F. na prisão, dando-lhe mais uma oportunidade para falar. A carta não teve resposta.
Nos últimos meses, um novo bando de adolescentes de extrema-direita juntou-se em Brandeburgo. A sua base é uma casa abandonada onde conseguiram entrar. Saúdam-se uns aos outros formando a letra L com os dedos da mão direita e gritando “Liberdade para L”, liberdade para Lukas.
Esta investigação é o resultado de uma colaboração entre repórteres do Politico, do Insider e do Welt am Sonntag, trabalhando em conjunto sob a tutela da Axel Springer Investigations. Os jornalistas usaram identidades falsas para se infiltrarem na rede. Também falaram com informadores, cientistas, especialistas em terrorismo, serviços secretos, autoridades na área da segurança e figuras proeminentes da rede e suas famílias.
Este trabalho, originalmente publicado em Julho de 2022, ganhou o primeiro prémio na categoria The Investigative Reporting Award do European Press Prize 2023, que gentilmente cedeu a sua republicação. Vencedores nas várias categorias e mais informações em europeanpressprize.com
Tradução: Eurico Monchique