Para marcar o tom, sublinhar o lapso temporal que existe entre o que agora escrevo e os momentos vividos (o que tal como Annie Ernaux no seu livro Uma Paixão Simples, me confere o poder de redigir estas linhas sem sentimento de vergonha), começo esta crónica com uma citação de Ernaux retirada desse mesmo livro: "É um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida com um exibicionista, porque um exibicionista só quer uma coisa, mostrar-se e ser visto no mesmo instante".
Nunca tive uma Barbie. Não que faltasse dinheiro em casa, mas os meus pais consideraram que não fazia sentido investir numa boneca que custava um almoço de família. Uma questão de prioridades. Para uma miúda, nos anos 1980, não ter uma Barbie representava uma vergonha social, um ultraje, um estigma daqueles que marcam a adolescência, aliás, uma vida, porque ainda hoje me recordo desse facto.
Quando fui mãe e por deliberada iniciativa, comprei às minhas filhas a boneca que nunca tive. Não uma, muitas: Barbie sereia, exploradora, bailarina, Barbie princesa e um Ken. Apenas Ken. Não pensei nos almoços de família. Quis somente que nestas meninas — no meu entendimento —, não ficasse essa falha, esse abismo de "nunca terem tido uma Barbie". Mera projecção pessoal, porque nestes tempos de abundância de Enchantimals, Rainbow High, Monsters High, a Barbie é mais uma boneca. O excesso retira a beleza de apreciar o pouco.
Que fique registado: os meus pais não foram insensíveis à dor da criança desprovida de boneca com corpo de mulher. Perante a tristeza e lamúria quase diárias "porque é que todas têm uma Barbie e eu não?", ofereceram-me uma Tucha.
Não sei se ter uma Tucha me fez ser diferente. Esta aquisição, em detrimento da Barbie, foi uma decisão meramente económica. Mas sou, e serei sempre, aquela menina que nunca teve uma Barbie.
Apesar de actualmente ter cabelo cor de fogo, o meu tom original é loiro. Por carregar o estigma de loira vistosa e a condição de fêmea, senti ao longo daquela que foi outra forma de existir — antes de a escrita ser a minha vida —, o peso de ser mulher com ambição e voz. Recordo-me de certa vez, um director afirmar que não era habitual encontrar uma mulher tão jovem (tinha 25 anos), com atitude e capacidade de liderança. Na altura, pareceu-me um elogio.
Lembro-me de, numa circunstância específica, ter de ir à esquadra da polícia, vestida com a roupa reduzida de Verão, numa longa noite com sabor a álcool que se misturou com o dia. Tudo por deixar o meu Opel Corsa, na rotunda, apinhada de carros no momento do estacionamento e, depois, já de madrugada, deserta, apenas com o meu carro como despojo da noitada. O reboque foi o seu destino. Suportei, de sorriso fechado e apertado cruzar de pernas, os olhares e as piadas dos senhores agentes da autoridade que não perderam a oportunidade para soltar um "mulher ao volante...".
Mais tarde, já depois dos 30 anos, recordo-me de me candidatar a um cargo de direcção e de o entrevistador (pouco mais velho do que eu), afirmar que eu tinha todas as qualificações e competências, mas que, como estava em idade de engravidar, não era uma candidata viável.
Todas nós, mulheres, temos, em determinados momentos da nossa existência, com contornos mais ou menos semelhantes, histórias assim, narrativas em que o simples facto de ser mulher nos colocou em inferioridade. Nem menciono as questões salariais.
O filme Barbie originou esta reflexão, este debruçar sobre o passado na busca de denominadores comuns de injustiça, vergonha, negação de oportunidades, originados só pelo género.
São necessários mais filmes como este, com este alcance planetário. A questão do patriarcado está lá, a sociedade machista, o manifesto contra a gerontofobia, gordofobia, o direito à diferença, também. Com humor e sátira. O domínio do capitalismo surge igualmente e o monstro do marketing ataca com veemência (enquanto escrevo estas linhas, passa uma ruidosa mensagem aérea com a frase "Barbie no cinema"). Eis a grande contradição, dirão: capitalismo a vociferar sobre si (a estreia do filme Barbie em Portugal ultrapassou um milhão de euros de bilheteira e assiste-se a um aumento da facturação dos produtos Mattel a nível mundial). Mas ainda assim, abre-se espaço para a reflexão e discussão.
Greta Gerwig, a realizadora, coloca na boca da personagem Gloria, interpretada pela fantástica America Ferrera (que em 2006 nos trouxe a Betty Feia), um discurso que salta do ecrã e embate na plateia com a força de um Intercidades. Um momento de afirmação da condição paradoxal de ser mulher. Não farei spoiler.
Desejo aos milhares de mulheres, jovens, crianças e homens que assistirão ao filme, a capacidade de compreender o peso das palavras e das mensagens em subtexto. Que vejam no rosto das actrizes, na cena referida, em particular, a dimensão do que todas sentimos.
Engane-se, quem for na expectativa de assistir a um filme fofinho. Barbie não é sobre o mundo perfeito da Barbie. O glamour pink está lá. É verdade. Não falta a banda sonora com canções da Dua Lipa, Nicki Minaj, Billie Eilish, Sam Smith, entre outros ícones musicais, roupas exuberantes e muito cor-de-rosa — é preciso o mesmo código para que a mensagem passe.
Barbie é mais do que um êxito de bilheteira, um desfilar de espectadores vestidos de cor-de-rosa. Muitos entrarão com a cabeça no mundo de plástico de Barbieland e sairão com os pés mais assentes neste mundo real que necessita urgentemente de mudança; outros, nada perceberão. Espero que a maioria passe a escolher o cor-de-rosa com outra convicção. Citando Victor Hugo no seu Os Miseráveis: "Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã".