Ele é católico. Eu não, mas as nossas vidas cruzam-se no humanismo

Francisco não é apenas um líder espiritual, mas também um líder político, o que faz dele um comunicador e influenciador não circunscrito aos católicos.

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"O Papa Francisco chama a atenção que cada um de nós é um presente" Nuno Ferreira Santos/Arquivo
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Durante séculos, as missas foram celebradas em latim de costas voltadas aos fiéis. Já lá vão uns bons anos desde que, numa manhã bem cedo, entrei numa igreja enquanto passeava pela cidade. Visitei-a no decorrer de uma missa na qual, para meu espanto, não havia mais ninguém presente, além do padre que a celebrava. Nem pensei que se realizassem nessas condições. A visita do Papa Francisco ao nosso país, a qual atraiu mais de milhão e meio de peregrinos, voltou a recordar-me esse momento, como contraste. Ele é católico. Eu não, mas as nossas vidas cruzam-se no humanismo, num sonho partilhado de um mundo melhor, com mais retas perpendiculares e menos paralelas, mais solidário e menos desigual.

Desde o início do pontificado que venho tropeçando nas suas palavras, que tantas vezes refletem o meu pensar e sentir. Nem sempre concordamos, mas sinto-o próximo. Este Papa fala para dentro. De cada um de nós. Fala ao coração e à consciência e percebe-se a preocupação sincera. O seu discurso, cativante e metafórico, não é oco e vazio e também não serve para maquilhar. Aqui e ali dá-nos esperança, conforto e apazigua. Ali e aqui coloca o dedo na ferida e provoca consciências. Não é apenas um líder espiritual, mas também um líder político, o que faz dele um comunicador e influenciador não circunscrito aos católicos.

Na via-sacra quis que os jovens escolhessem os temas que mais os preocupavam. Está atento às preocupações reais e atuais, daqueles que têm mais futuro do que passado. Ainda com caminho a percorrer, é certo, mas onde se vislumbram capacidades, competências, potencial e motivação. Se não lhes dermos oportunidade para crescer no presente, dificilmente teremos um futuro melhor.

Algumas preocupações abordadas foram as alterações climáticas e a pobreza. David Attenborough referia que “quem acredita em crescimento infinito em um planeta fisicamente finito, ou é louco, ou é economista”. Não obstante o exagero da expressão, ela é reveladora de uma forma de olhar para o nosso planeta como local de extração infinita, que não deu ainda o que tinha a dar. Este fenómeno é mais gritante em algumas geografias. Como quem vai aumentando mais uma ou duas casas à vida, reduzindo os já parcos recursos existentes e acrescentando uma distribuição desigual.

O próprio Fórum Económico Mundial divulgou que o aumento das desigualdades sociais é a maior ameaça que a economia global enfrenta. Quanto mais se vai exigir, enquanto observamos a vida entreter-se no seu insensato gastar-se, com consequências nefastas para todas as pessoas e para o ambiente? Nos 20 anos que antecederam a pandemia, foi possível reduzir a pobreza extrema para metade, a nível mundial. É um sonho possível! E há sempre alguém que sonha em qualquer parte!

Outro dos temas em destaque foi a intolerância. “São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal”, como diria o poeta da minha terra. Perdemos terreno quando nos deixamos dominar pelos nossos medos, preconceitos e vinganças mesquinhas, quantas vezes apenas por dificuldade em gerir emoções. O que estamos a ser nessas circunstâncias? Voz ou eco? Laço ou nó (cego)? E que tal canalizarmos o enorme potencial que temos para o bem comum, em casa, no trabalho e na comunidade? Que tal ajudarmos a refletir essa realidade, numa campanha que seria uma espécie de “serei o teu espelho”? É urgente quebrar esse ciclo!

Como disse o Papa Francisco, isto faz-se com todos. Juntos. Palavras que repetiu à exaustão. Devemos fazer um esforço para diminuir o ego e para combater e erradicar ideias intolerantes. Não pessoas. Colocá-las no arrumário, palavra maravilhosamente criada pelo Mia Couto, como forma de substituir a palavra armário, originalmente usada como local onde se guardavam armas.

O Papa Francisco chama a atenção que cada um de nós é um presente. É portador de um dom. E a gentileza não deverá ser esquecida. Só se sabe ser doce quando se é suficientemente forte. E seremos tão mais fortes, quanto o nosso elo mais fraco! Lembrando que esse elo mais fraco poderá ser qualquer um de nós, em dado momento e circunstância.

Perguntaram uma vez à Madre Teresa de Calcutá se não sentia que o que fazia era uma gota no meio de um oceano. Ao que respondeu que sim, mas sem ela o oceano seria menor. No seu caso, muito menor. Cada um de nós acrescenta ou pode acrescentar uma gota ao oceano, com os seus pequenos grandes gestos diários, mais ou menos visíveis, que suavizam as quedas, nos amparam e ajudam a sorrir. Prestes a iniciar as minhas férias, faço um balanço do ano e sinto muito gratidão. Obrigada pela vossa gota-parte!

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