JMJ: “Now . . . This”
O “discurso” do Papa, (auto) armadilhado de slogans e lugares-comuns, perdeu o conteúdo fundamental do seu pensamento escrito, dando um cunho festivaleiro à Jornada Mundial da Juventude.
O título desta crónica é retirado, na parte em inglês, do título do capítulo 7 do livro Amusing ourselves to death (1985), de Neil Postman, professor universitário e autor de diversos livros sobre educação de jovens e outros temas relacionados.
O “now... this” é a formulação dos apresentadores de televisão (EUA) na exposição de diversas notícias em sequência, demonstrando a irrelevância da notícia anterior em relação ao conteúdo seguinte. Ou seja, na opinião do autor, a frase ilustra o reconhecimento de que o mundo mapeado pelos media electrónicos, em alta velocidade, não tinha ordem ou significado, para ser tomado de modo sério (ainda a procissão ia no adro).
Em síntese (e simplificando), Postman defende que a passagem da palavra escrita (the typographic mind) para uma linguagem fragmentária (primeiro com o telégrafo) e, mais tarde, com a televisão, para uma linguagem sensacionalista (apelo a emoções), sem racionalidade intrínseca, e de impossibilidade de validação da autenticidade, desencadeou a era do espectáculo a nível de toda a comunicação, com especial relevo para a política. Segundo o autor, este novo tempo condiciona todo o discurso público, limitando a apreensão da complexidade das proposições, paralisando o pensamento crítico e a acção (há exemplos a contrario como a mobilização popular contra a guerra do Vietnam, muito impulsionada pelas imagens televisivas).
O Papa Francisco tem um abundante acervo de escritos sobre problemas actuais. Estudando duas encíclicas: Laudato si´ (88 páginas) e Fratelli tutti (97 páginas) – tempo de leitura médio com atenção de cerca de quatro horas –, podemos analisar o pensamento do Papa, com notórias e pertinentes contribuições externas, sobre diferentes temas. Nestas cartas, disponíveis em diversas línguas, são abordados diferentes (e interrelacionados) conteúdos, tais como: a responsabilidade sobre as alterações climáticas, o impacto desigual das alterações climáticas por região e níveis de rendimento, ecologia e amor à natureza, distribuição desigual de riqueza, consumismo excessivo por oposição a carências básicas, a apropriação de recursos naturais e as dívidas externas de países em privação, as migrações, o dever de auxílio aos mais fragilizados.
Apesar de o Papa Francisco ter aprofundado e relacionado muitos destes assuntos, são descritas, logo nas primeiras páginas da encíclica Laudato si´, diversas abordagens às questões ambientais e modelo socioeconómico subjacente, desde o Papa Paulo VI, nos anos 70 do século passado, e atravessando dois papas anteriores a Francisco (João Paulo II e Bento XVI). Por exemplo, o Papa Bento XVI renova o convite a “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito pelo meio ambiente”.
Atendendo a este historial humanista e ambiental, seria de esperar que os jovens (milhão e meio) da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) estivessem bem preparados (atrevo-me mesmo a dizer que alguns poderiam ter lido as encíclicas referidas), entusiasmados e muito motivados para discussão dos problemas descritos (e escritos) pelos diversos papas, com especial relevo para o desenvolvimento conceptual mais densificado do Papa Francisco.
JMJ: o slogan e o lugar-comum como substitutos do pensamento, da introspeção e da transcendência
Título apropriado de um artigo de imprensa: Papa corta nos discursos escritos, evita partes entediantes e improvisa. (Visão, 6 agosto 2023; o bold é da minha safra)
Confirmando a tese de Neil Postman, a sociedade do espectáculo tomou conta do discurso público da JMJ, com as limitações inerentes para a análise racional da(s) realidade(s), argumentos e contra-argumentos sobre soluções e medidas, ou pelo menos, consciencialização dos problemas que temos de enfrentar.
Os slogans e lugares-comuns utilizados na JMJ – os jovens não devem ter medo, a Igreja é de todos, sejam surfistas do amor – não ficam nada a dever à vacuidade dos conselhos de autoajuda mais desqualificados. O “discurso” do Papa, assim (auto) armadilhado, perdeu o conteúdo fundamental do seu pensamento escrito (e que naturalmente conseguirá verbalizar), dando um cunho festivaleiro à JMJ, em momento de grande importância para o destino destes e de outros jovens. Este espectáculo foi levado ao zénite pelas reportagens de televisão, comentários associados e os sorrisos dos jovens para as câmaras (e dois aviões F-16?).
O fraseado papal, manual de autocomplacência para uma sensorial JMJ, foi um presente para as facções mais retrógradas da Igreja, nomeadamente para alguns colégios católicos, pertencentes a agremiações de ditas elites (de negócios), ninhos de compadrios florescentes, para os jovens singrarem na vida sem grandes sobressaltos ecológicos e de equidade da distribuição de riqueza.
A minha opinião, escrita, poderá ser rebatida pelo argumento de as JMJ serem de facto uma festa, e de o pensamento crítico sobre os relevantes temas das encíclicas ter um lugar próprio para reflexão. Admitindo, com benevolência, que as matérias referidas são debatidas intensamente entre as diversas comunidades católicas, poderá ficar a pergunta: e as atitudes e a acção?
O quadro mental das comunidades católicas, designadamente na Europa do Sul, é predominantemente caritativo, na melhor das hipóteses, apesar da existência de muitas organizações meritórias e de enorme coragem que fazem um trabalho de elevada inspiração cristã.
Estarei a ser injusto? O discurso público (e publicado) e as práticas da maioria das pessoas da Igreja Católica, na Europa, estarão em coerência com as preocupações manifestadas pelos diversos papas, desde os anos 70 do século XX, e com maior acuidade e estruturação por Francisco? Em caso afirmativo, seria de esperar que a evolução europeia nos temas mencionados estivesse noutro patamar, com a tão evocada energia cívica dos jovens católicos. Embora as instituições europeias tivessem criado a ideia espúria de um Continente de baixas emissões e grandes ambições ambientais, o que se verifica, na prática, são avanços a passo de caracol e falseados resultados/indicadores, ignorando a ampla deslocalização de indústrias poluentes, cujos produtos são importados em massa.
A sociedade do espectáculo, enunciada por N. Postman, estará próxima do seu apogeu. A memória nada guarda, os pensamentos são líquidos e efémeros, a vontade de mudar é feita de plasticina, hoje é isto amanhã é aquilo, quem vier atrás (gerações seguintes) que se ocupe da casa comum da Humanidade.
Por este caminho o Papa Francisco será um pregador solitário, no meio de uma turba eufórica, por muito que oculte a frustração.
P.S. O nosso Presidente da República, católico, afirmou em 2019 que iria promover, junto da sociedade e Governo, a atribuição de lares aos sem-abrigo. A concretização deste desígnio está longe de ser impossível. No contexto actual, de uma política de habitação governamental que já foi tudo e, agora, é nada, a última coisa de que me lembro do Presidente é a publicidade (gratuita, sejamos justos) a uma marca de gelados.