Esta é a minha história, mas podia ser a de tantas outras mulheres. Comecei a desafiar-me sozinha, em casa, a dar o maior número de toques na bola. Era o que fazia depois da longa caminhada da escola primária até casa, naquela pacata aldeia transmontana. A minha referência era o Fernando Couto, ainda que ele nem sequer representasse o meu clube. Os longos treinos solitários com a bola desgastada faziam-me imaginar “e se tivesse nascido homem?”.
Aos 12 anos iniciei um hábito financeiramente pouco saudável: todos os dias, ao ir para o Liceu de Vila Real, comprava um dos jornais desportivos. Não tinha qualquer preferência. Podia esquecer-me dos livros, do jornal nunca. Metia-o debaixo do braço e lá ia eu discutir as novidades com os rapazes e com a única amiga que me acompanhava nessas leituras e nos jogos disputados à hora de almoço naqueles campos de alcatrão: a Clara. Era, tal como eu, a única que não se conformava em ir apenas à baliza (sem desmerecer a importância, obviamente). Nós sabíamos que eram os que tinham menos jeito com os pés que iam parar à baliza nos jogos entre amigos. E esse inconformismo fez-nos ir ganhando espaço e respeito entre os rapazes, mas nem sempre a compreensão das raparigas.
Numa das primeiras aulas de futebol que tive em educação física, no sétimo ano, a professora - ao ver-me com a bola nos pés - perguntou-me se eu jogava futebol. Naturalmente vi aquela pergunta como um elogio. As minhas palavras responderam apenas “não”, mas a minha cabeça questionou “onde, professora, onde?”. Entrava na escola pelo parque de estacionamento, a minha tia era lá funcionária e eu ia todos os dias com ela. Houve um dia em que os meus colegas ficaram perto da entrada à minha espera. O Benfica ganhara ao Sporting com um golo polémico. Queriam saber a minha opinião assim que chegasse. Tem graça recordar-me destas pequenas coisas, porque, à data, eram grandes conquistas. Insignificantes para eles, enormes para mim.
Na família a visão era diferente. Gostar de futebol era coisa de homem e esta paixão era quase como se fosse um fracasso enquanto mulher. Até ao final do secundário mantive os treinos em casa e os jogos entre turmas na escola. Mas aproximava-se a hora de pensar no futuro e a carreira no futebol era impensável. Nem era sequer uma ideia que nos passasse pela cabeça. Os jornais deixaram de ser comprados e rendi-me à crença alheia de que tinha de abrandar a paixão. Durante alguns anos afastei-me do futebol. Mas tudo volta.
A emoção de ver a selecção feminina ao mais alto nível não é só por elas. É por todas nós, pela oportunidade que tantas não tiveram. Em 32 anos nunca tinha chorado ao ouvir o hino. Nunca, até àquela manhã de 23 de Julho. As lágrimas foram as da infância, as da adolescência e as de agora. E foram também um desabafar de tanta luta pela igualdade, de tantos anos a querermos simplesmente as mesmas oportunidades.
Fomos ver o último amigável antes do mundial ao Bessa. Perguntei à minha amiga Diana se alguma vez, há 20 anos, imaginara um estádio cheio para ver a selecção feminina. “Nunca. E é espectacular tudo isto”.
Hoje, as meninas que se desafiam sozinhas pelas aldeias de Portugal querem ser como estas jogadoras. Hoje são as referências, navegadoras. Querem comprar a camisola 10 porque é da Jéssica, a 9 porque é da Borges, a 5 da Marchão ou a 3 da Lúcia. São as referências que nunca deixaram de acreditar, mesmo com todas as barreiras. E assim escreveram uma bonita página na história do desporto português.
Nunca foi só sobre futebol, é muito mais do que um jogo. Aconteça o que acontecer, já ganhámos todas.