Da revolta contra o salário mínimo perpétuo ao sacrifício do duplo emprego
No papel, diminuiu o risco de pobreza para a população empregada. Na vida, é preciso abdicar da vida pessoal e centrar a energia no trabalho. Inês resiste ao salário mínimo, Filipa tem dois empregos
Apesar de a estatística dar conta de uma diminuição do risco de pobreza entre a população empregada, para se manterem à tona, Inês e Filipa têm noção de que abdicam de muitos dos direitos básicos. Da vida pessoal em geral à simples convivência com a família – quanto mais manter relações amorosas. Em Rio Maior, Inês Santos, 38 anos, trabalha numa fábrica de processamento de carne e ganha um salário mínimo “perpétuo” desde que, em 2006, ingressou nos quadros da empresa. Em Lisboa, Filipa acumula dois empregos, completando meses sem um dia de descanso.
“Há meses em que não tenho uma única folga, dado as folgas nos meus empregos serem rotativas”, desabafa Filipa, 29 anos. Filipa é operadora turística das 09h45 às 18h30 (folga às segundas e terças-feiras) e empregada de loja num centro comercial das 20h30 às 00h30. Os dias são maratonas de trabalho e de incontornáveis deslocações, nos transportes públicos, de e para casa.
O peso de uma vida sobrecarregada pela necessidade de ter rendimentos para viver em Lisboa e ter dinheiro para cobrir as despesas todos os meses acentua-se, apesar da consciência de ter sido uma opção de vida que teria, inevitavelmente, consequências algo pesadas.
Filipa cresceu na Amadora, onde vivem os pais, e começou a trabalhar aos 20 anos, enquanto concluía o secundário (curso técnico de multimédia do Instituto do Emprego e Formação Profissional).
“Comecei a trabalhar aos 20, enquanto concluía o 12.º ano. Fui trabalhando sempre em lojas de rua e de centros comerciais. Entretanto, fui viver sozinha há quatro anos. Vivia com a minha avó na Amadora e não pagava renda, mas a minha avó teve de vender a casa”, conta. “E vim viver para Lisboa. Estive um ano à procura de casa, mas as rendas eram muito altas e decidi arranjar dois trabalhos. Um que fosse de manhã para poder ter outro ao final do dia”, explica.
“Há um ano, consegui um T0 muito pequeno, onde só dá mesmo para viver uma pessoa, em Campo de Ourique, mas tenho dois trabalhos, por sorte tenho tido sempre dois trabalhos”, sublinha.
Esta “sorte” não significa a fortuna de ter condições privilegiadas, mas tão-só a possibilidade de conjugar nas 24 horas do dia dois blocos de trabalho num total de 12 horas (oito no emprego diurno e quatro no nocturno). “Como operadora turística, já estou a trabalhar há um ano. No trabalho da noite, tive de ir saltando, por causa dos horários. As empresas não querem facilitar horários fixos e o meu tem de ser fixo, querem que trabalhemos sempre com disponibilidade o dia inteiro, para respondermos quando nos chamam. Seja de manhã, seja de tarde, temos de ir quando nos chamam”, comenta.
Nos últimos meses, Filipa conseguiu encontrar numa loja de centro comercial um horário nocturno fixo. Isto permite-lhe fazer face às despesas. Pagar a renda mensal de 500 euros do T0 e as contas dos serviços associados à habitação e da alimentação. Nos melhores meses, consegue tirar um rendimento conjunto líquido de 1300 euros, mas, mesmo se o rendimento lhe permite fazer face às despesas correntes, não justifica o sacrifício de outras áreas primordiais da vida.
“É uma gestão de tempo difícil para poder ter dois trabalhos”, assume. “E, com os preços a aumentarem cada vez mais, estou a ver que não vou conseguir pagar as contas e equaciono sair de Portugal”, admite, contrariada. “Tenho uma amiga na Dinamarca, que é fisioterapeuta, estou a pensar juntar-me a ela”, desabafa.
“Não queria deixar o meu país, adoro Lisboa, mas prefiro ir para fora a voltar a casa dos meus pais, porque quero a minha independência”, prossegue. Até porque a grande factura vem em forma de indisponibilidade, e alguma incompreensão, dos outros, aqueles com quem quer partilhar a sua escassa vida fora do trabalho.
“Vida pessoal? [Sorriso nervoso] É complicado, nem toda a gente compreende a falta de tempo. Há alturas em que estou mais de um mês sem ver os meus pais, e eles vivem na Amadora. Se com a família é assim, imagine-se com amigos ou em relações amorosas”, analisa.
E tenta não se iludir quanto às consequências desta vida asfixiada pela carga laboral. “Há semanas em que me vou completamente abaixo. Mas tento sempre resistir, pensando que há dias bons e há dias maus”, revela. Os bons, por norma, advêm do tempo que investe em si e nos outros. “Felizmente, ainda me sobra um bocadinho de dinheiro para ir arejar a cabeça. Não dá para ir passear todos os meses ou sair à noite todos os fins-de-semana, mas de vez em quando lá consigo”, conclui.
Trabalhar para sobreviver
A situação de Filipa não entra nas estatísticas, designadamente as europeias (Eurostat) ou as nacionais (Instituto Nacional de Estatística, através do ICOR – Inquérito às Condições de Vida e Rendimento). O relatório Portugal, Balanço Social 2022, com dados de 2020, estabeleceu o limiar de pobreza em 6653 euros anuais (554,40 euros por mês), dando conta de que, entre a população empregada, houve um aumento do risco de pobreza: dos 10% em 2019 para os 12,1% em 2020. Já na posse de dados de 2021, o Instituto Nacional de Estatística verificou uma diminuição para 10,3% do risco de pobreza entre os trabalhadores.
O limiar de pobreza é a última barreira, e praticamente intransponível sem apoios sociais, para os trabalhadores. Mas economicamente acima disso há trabalhadores que são incluídos no enquadramento do risco de pobreza por não conseguirem aceder a um conjunto de bens que o trabalho deveria garantir. Como o acesso a habitação, aquecimento, roupa, uma semana de férias fora de casa. Para a primeira (ter onde viver com independência), a Filipa abdica da vida pessoal. Até um dia, como a própria reconhece.
Os parâmetros de análise social e económica estabelecem, aliás, vários tipos de pobreza. Uma que afecta uma grande parte da população trabalhadora é a privação material ou a privação material severa (aqui incluem-se bens ainda mais básicos, como os custos da alimentação, da energia ou da água).
Veja-se o caso da Inês, 38 anos, que, mesmo trabalhando há duas décadas, já com um filho de 21 anos, não tem alternativa senão continuar a viver na casa da mãe para cumprir com as obrigações mensais.
Inês Santos, empregada de uma fábrica de processamento de carnes em Rio Maior, sente uma forte degradação das condições de vida dos trabalhadores face ao perpetuamento da política de salários mínimos, agravada pela galopante subida da inflação e dos custos associados, seja na habitação ou na alimentação, para dar dois exemplos estruturais da vida dos cidadãos. E sente-o sobretudo com trabalhadores com os quais se relaciona profissionalmente ou através da actividade sindical (é dirigente da União de Sindicatos de Santarém), que em comum têm a bitola persistente do salário mínimo nacional (760 euros brutos em 2023).
“Como eu [a auferir o salário mínimo há décadas], há muitos. Há cada vez mais famílias a viverem este drama nestas condições. Acaba por ser revoltante. Tenho colegas com filhos e que têm de ter dois trabalhos. Fazem turnos à noite num local e pegam ao trabalho de manhã na fábrica. Mal vêem os filhos. E tudo para conseguir pagar as rendas”, indigna-se Inês.
Aos 38 anos, a sua própria situação também a revolta. Tem andado em negociações infrutíferas com a empresa para a melhoria das condições salariais há anos, mas continua a ganhar o salário mínimo, que só é melhorado, literalmente, por decreto.
A história dos rendimentos mínimos acompanha-a há mais de 20 anos, quando teve de começar a trabalhar antes de completar os 18 anos. E nunca conseguiu sair da casa da mãe, que acolhe a filha e o neto de quase 22 anos completos. “Estudei até ao 11.º ano. Fui mãe com 16 anos e tive de abandonar os estudos e começar no mundo do trabalho, embora na verdade já por lá andasse em part-time aos fins-de-semana”, enquadra a operária.
“Moro em casa da minha mãe, e felizmente tenho essa possibilidade que nem toda a gente tem. Com o meu ordenado, nunca consegui sair para uma casa minha. É muito caro viver em Rio Maior, as rendas estão muito caras. Não se arranja nada abaixo dos 450 euros e é complicado conseguir arrendar, até porque há muito poucas casas no mercado”, diz.
A alternativa viável é virtual e perniciosa: arrendar habitação numa aldeia mais periférica. “Em aldeias mais longe da cidade, há rendas mais baixas, mas depois gastaríamos mais em transportes do que o que se pouparia na renda”, sublinha.
Além da degradação dos rendimentos nos 17 anos que leva na mesma empresa –porque se por um lado o salário mínimo tem sido actualizado em Portugal, por outro o custo de vida tem aumentado a um ritmo superior –, há o ciclo de precariedade em que está inserida e que não se prevê que possa ser quebrado no futuro próximo.
Por um lado, há o caso do filho, nascido em Outubro de 2001, que também já entrou no mercado de trabalho em condições precárias. Além disso, o facto de deixar de ser dependente para efeitos fiscais fê-la subir de escalão de IRS, perdendo algum rendimento líquido. “O meu salário traduz-se em 600 e tal euros por mês”, especifica.
Com esta degradação dos rendimentos face à subida do custo de vida, as ambições mais pessoais esboroam-se. “Claro que gostava de ter a minha própria casa e a minha privacidade, o meu cantinho”, confessa. Mas, mesmo sendo trabalhadora por contra de outrem com contrato de trabalho, isso não é possível.
Além disso, há a perpetuação do ciclo dos salários mínimos: “Tenho colegas, a trabalhar ao meu lado, há 40 anos a ganharem o mesmo: o ordenado mínimo.”
No caso de Inês, trata-se de um trabalho até menos duro do que o da maioria dos colegas na fábrica que processa carne para a produção de salsichas, fiambre e chouriços. “Trabalho na secção dos fatiados, que não é uma das salas mais duras, como a da desossa. Embalo o produto fatiado e trabalho naquilo a que chamamos uma sala branca [por ser um ambiente mais protegido de sujidade]”, conclui Inês.
A pobreza na infância e nos mais velhos, as privações materiais e sociais, as diferenças regionais e os desafios do custo de vida. Nesta série editorial, o PÚBLICO faz um raio X ao impacto da pandemia de covid-19 em Portugal, promovido pela Fundação ‘la Caixa’, do BPI e da Nova SBE, promotores do estudo Portugal, Balanço Social 2022, publicado em 2023.