Tribunal Constitucional: um clube de homens?
Bem sei que nem sempre é fácil conciliar posições, mas hoje temos a oportunidade de fazer história neste longo caminho que é a igualdade de género.
Hoje serão votados projetos de lei do Bloco de Esquerda e do PAN para introduzir quotas de género na composição do Tribunal Constitucional. Motivo? A profunda convicção de que não há glória ou honra em fazer do TC a aldeia gaulesa do conservadorismo machista constitucional. Exagero? Em 41 anos de história, o TC teve 81 juízes, 66 foram homens e apenas 15 mulheres, equivalente a apenas 19% do número total. Até hoje nenhuma mulher chegou à presidência, tendo Maria Lúcia Amaral atingido o máximo de vice, e apenas uma mulher foi escolhida pelos pares como magistrada daquele tribunal. Atualmente, as mulheres são apenas 25% do Tribunal Constitucional.
Aquando da última cooptação (só de homens) para o TC, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) dirigiu uma carta ao presidente da Assembleia da República pedindo a Augusto Santos Silva que "exorte os diferentes grupos parlamentares a apresentarem e debaterem um diploma" que garanta "o princípio de representação paritária na composição do Tribunal Constitucional (TC)". Os projetos apareceram, mas a maioria para os aprovar afinal tinha mais espinhas do que se esperava, e houve até quem ficasse engasgado.
A oposição mais aguerrida chegou de onde menos se esperava – do interior do próprio Partido Socialista. O tiro de partida parece ter sido disparado por Vital Moreira, que acusou de “fundamentalismo ideológico” a tentativa de estender ao Tribunal Constitucional as regras de paridade que já se aplicam a um largo conjunto de instituições públicas e até de empresas privadas cotadas em bolsa. Alguns dias depois, oito deputados do PS vieram apresentar por escrito as suas Razões de uma discordância. Num e noutro caso, desenvolvem argumentos de ordem política e de conformidade. Comecemos pelos mais sérios.
Argumentam os deputados socialistas que a introdução de quotas de género interferiria com os requisitos de acesso ao Tribunal Constitucional previstos no artigo 222.º da CRP, designadamente os que determinam que “seis de entre os juízes designados pela Assembleia da República ou cooptados são obrigatoriamente escolhidos de entre juízes dos restantes tribunais e os demais de entre juristas”. Até aqui tudo certo, mas num habilidoso salto quântico, os deputados concluem que a introdução de outros requisitos – como a paridade – estaria sujeita a uma revisão constitucional.
Tendo crescido numa geração que viu as quotas de género serem cada vez menos contestadas, sobretudo pela evidência de que foram elas que nos abriram as portas dos olimpos institucionais “misteriosamente” masculinizados, confesso que fiquei perplexa. Se não há dúvida de que as quotas são uma regra que define a representatividade de homens e mulheres, mas nunca as suas características individuais, em que é que a introdução de quotas de género alteraria os requisitos de acesso ao TC? Felizmente, Teresa Violante apressou-se a clarificar: em nada – “ser mulher não é um requisito. É uma condição”.
Estranhei que tivesse vindo do PS a ideia de que a paridade pode ser inconstitucional. Foi argumentado, nomeadamente por Vital Moreira, que o artigo 109.º da CRP, ao prever a paridade para órgãos políticos, não habilita qualquer veleidade do legislador em querer aplicá-la ao TC, que faltaria base constitucional para essa "ação afirmativa". Essa não é, no entanto, a interpretação de Alexandra Leitão, que entende que a CRP, como qualquer texto jurídico, deve ser interpretado de forma integrada e coerente com o seu todo, não se podendo, por isso, ignorar a revisão constitucional de 1997 e a introdução da promoção da igualdade entre homens e mulheres como tarefa do Estado; ou de Isabel Moreira, que pergunta se “Os que pensam que só há habilitação constitucional para 'quotas políticas' estão, portanto, a dizer que a lei-quadro das entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos sectores privado, público e cooperativo, que fixou quotas de género, é inconstitucional, certo?”
Mas o debate não deve ter sido tão fulminante assim, porque ainda deu tempo para Miguel Prata Roque e Catarina Marcelino fazerem a derradeira pergunta: a sério que discutimos outra vez a balela do mérito? Faço questão de aqui chegar tendo passado revista ao debate constitucional feito por personalidades de inegáveis qualificações jurídicas, porque é aqui que o debate regressa ao ponto de onde nunca verdadeiramente saiu: a política.
A prova de que o Tribunal Constitucional tem uma natureza profundamente política, marcada a ferro na forma de escolha dos seus conselheiros, é precisamente o facto de permanecer um clube de homens no meio de uma magistratura (de carreira) cada vez mais feminina. Acho que não corro o risco de spoiler por segredo mais mal guardado das altas instâncias políticas: por muitas razões que não cabem agora aqui, os homens tendem a escolher homens, independentemente do mérito das mulheres. Por outro lado, como argumenta – e bem – Teresa Violante: “uma composição monolítica e não plural, ainda que composta pelos maiores génios do direito, não representaria a comunidade nacional e não cumpriria a função de representação que, em democracia constitucional, impende também sobre o TC.”
Quanto aos deputados do Partido Socialista que assinaram a posição contrária à paridade no TC, podem ter começado pela (in)constitucionalidade, mas depressa lhes fugiu a caneta para a política. Quotas? “Só quando não há outro remédio mobilizável é que se torna legítima a distorção na liberdade de escolha em que se traduz a instituição de quotas. Não será o caso da justiça”, dizem. E, desta forma, ficamos esclarecidos sobre o que pensam – para os autores, o sistemático afastamento das mulheres do TC não constitui uma distorção da democracia pelo patriarcado, pelo menos não tão grave quanto a “distorção da liberdade” provocada pela igualdade.
Apesar de tudo, ainda nada está decidido. Bem sei que nem sempre é fácil conciliar posições, mas hoje temos a oportunidade de fazer história neste longo caminho que é a igualdade de género… vale a pena, ainda que se tenha de engolir uma ou outra espinha.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico