A norma transitória: doutorados em transição para o desemprego?
Com os contratos da norma transitória a chegarem ao último ano, as universidades perspectivam-se com o ónus de cumprir a lei, sem meios financeiros para tal. O Ministério da Ciência mantém-se mudo.
No final de Agosto de 2016, o Governo fresquinho da chamada “Geringonça” publicou um diploma para o estímulo ao emprego científico, considerando que, desde as reformas de Mariano Gago na década de 90, haviam sido estabelecidas as bases de um sistema científico nacional, mas que era urgente enquadrar os recursos humanos que o compunham. Ou seja, promover contratos de trabalho e possibilidades de carreira às pessoas que davam forma a esse mesmo sistema científico. Até aqui tudo bem.
Este decreto-lei vinha acompanhado de uma “norma transitória” (NT) estipulando um lapso temporal (em si mesmo questionável), que definia quem era elegível para beneficiar de imediato desta política. Os “sortudos” que encaixaram no critério foram, através de concursos, enquadrados em contrato de seis anos com a expectativa de ao fim desse tempo serem integrados no quadro das instituições onde desenvolviam o seu trabalho.
Pouco tempo depois, essa expectativa passou mesmo a compromisso legal com a alteração do dito diploma através da introdução de uma cláusula onde se dizia explicitamente que, antes de terminarem os ditos seis anos de contrato, as instituições tinham obrigação de abrir concurso para o provimento do lugar desse investigador. Tudo a ganhar forma e a sugerir planeamento a mais longo prazo.
E assim, em 2019, cerca de 1700 doutorados que há anos desenvolviam trabalho científico em dezenas de instituições e universidades do país beneficiaram, a maioria pela primeira vez, de um contrato de trabalho. E respiraram fundo face à perspectiva de finalmente ingressarem num caminho de inversão da precariedade.
Estamos em Julho de 2023 e a maioria destes investigadores está prestes a entrar no seu sexto e último ano de contrato e, portanto, muito próximos de ver a meta da “transição” por fim ultrapassada. E, no entanto, o cenário de incerteza, dubiedade e silêncio que se tem verificado nos últimos meses é tudo menos tranquilizador.
Circulou o rumor de que as universidades não iriam renovar os contratos da norma transitória do 5.º para o 6.º ano. Foi parcialmente desmentido, mas nada foi dado por garantido. Estes investigadores, que consideravam estar a presenciar uma importante etapa do processo de regularização do emprego científico português, estão neste momento sem saber se mantêm os seus postos de trabalho daqui a poucos meses. Porque é que isto está a acontecer?
A principal razão é porque não se pode dizer que exista uma política científica em Portugal. Desde a publicação do diploma de 2016 até hoje, não houve da parte do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nenhuma medida que viabilizasse o cumprimento da prometida integração dos investigadores da norma transitória. Na verdade, desde então os sucessivos governos continuaram a estimular o emprego científico precário e não criaram as condições financeiras para as universidades absorverem estas pessoas na longa duração.
Pelo contrário, o orçamento das universidades portuguesas tem vindo a ser reduzido na última década, impossibilitando novas contratações. Pelo que se é levado a pensar uma de duas coisas: ou o diploma de 2016 se tratou apenas de uma manobra de diversão e nunca teve a intenção de ser cumprido, o que é gravíssimo; ou o “emprego científico” é mais um dos muitos assuntos para os quais o Governo não tem um planeamento estratégico e vai arranjando soluções de improviso. Em qualquer dos casos, a irresponsabilidade política é angustiante.
Tudo isto é possível também porque estamos ainda longe de poder afirmar que exista em Portugal uma comunidade científica coesa e responsável. Na ausência de uma política científica coerente, as universidades acabaram por se habituar à lógica instrumentalista e rotativa do uso do trabalho precário. Permitindo, de forma mais ou menos consciente, que se chegasse à situação escandalosa que se vive hoje. Para muitas, não terá feito grande diferença ter ou não ter um quadro de investigadores permanente, já que de cinco em cinco anos chegaram sempre mais fornadas de investigadores (com bolsas individuais ou de projectos ou com contratos a termo) para substituir os anteriores, ou até mesmo para manter aqueles que já aí desenvolviam a sua investigação ou davam aulas há muito tempo.
Presentemente, com os contratos da norma transitória a chegarem ao último ano, as universidades perspectivam-se com o ónus de cumprir a lei, sem meios financeiros para o fazer. O Ministério da Ciência, por sua vez, mantém-se mudo. Sete anos depois da promulgação do Diploma de Estímulo ao Emprego Científico, parece que chegámos a um impasse sem que seja fácil descortinar as intenções dos jogadores.
As centenas de contratos de trabalho que estão em jogo nos próximos meses serão apenas a primeira peça do desmoronar de uma alegada bolha de especulação dos últimos 40 anos que o Governo está agora empenhado em fazer desinchar? Se assim é, como explicar que apenas há seis anos afirmasse que “a aposta no conhecimento constitui um desígnio central do programa do XXI Governo Constitucional, reflectindo a relevância que o emprego científico assume na sociedade portuguesa”? Estava o Governo iludido? Ou esteve sempre a iludir-nos? Ou estaremos perante mais um caso de desalinhamento e alheamento ministerial?
Nas poucas manifestações públicas sobre este assunto, a ministra tem revelado um pensamento sobre a ciência que parece alheado de boa parte da realidade que tutela. As vagas propostas a que tem aludido parecem significar uma verdadeira inversão de tendência e desinvestimento, pelo menos nas ciências que não conseguem produzir o tipo de resultados que atraem o financiamento privado e que necessitam, por conseguinte, de forte apoio por parte do Estado. Será que a ministra considera estas ciências menos importantes para a sociedade? Todas as perguntas e hipóteses são possíveis, uma vez que pouco ou nada foi até agora dado a conhecer.
Uma coisa é certa, as universidades têm neste momento perante si a oportunidade de mostrar a sua força e o seu lugar no processo de regularização do emprego científico. Mantêm-se passivas face ao silêncio que ameaça pôr em causa o seu funcionamento regular e parece anunciar o desmantelamento do sistema científico nacional. Ou mobilizam-se pela defesa dos seus investigadores, sabendo, melhor que ninguém, que sem eles não há ciência.
Investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (contratada ao abrigo da norma transitória)