Run, Caster Semenya, run!
As tumultuosas derrotas e vitórias de Caster Semenya ficam na história do atletismo e dos direitos humanos das pessoas intersexo.
No dia 11 de julho, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) decidiu em favor de Caster Semenya, atleta olímpica sul-africana, especialista em corridas de média-distância, cujos vários triunfos catapultaram a indagação do seu sexo e da sua identidade de género, ao longo de mais de dez anos.
A batalha judicial iniciou-se quando, em 2019, contestou, junto do Tribunal Arbitral do Desporto, a legalidade do Regulamento de Diferenças de Desenvolvimento Sexual (DSD) da, hoje, World Athletics, que a impossibilitava de aceder à competição de elite internacional, na categoria feminina, por recusar reduzir os níveis de testosterona naturalmente produzidos pelo seu corpo. Seguiu-se a interposição do recurso desta decisão para o Tribunal Federal suíço, que o julgou improcedente, e a subsequente submissão da queixa contra o Estado suíço diante do TEDH.
Esta instância decisória internacional considerou que estava em causa uma violação da proibição da discriminação (artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – CEDH), em conjugação com o direito ao respeito pela vida privada (artigo 8.º da CEDH), aliando a violação do direito à tutela jurisdicional efetiva (artigo 13.º da CEDH).
Concluiu, fundamentalmente, que a Semenya não tinham sido asseguradas garantias institucionais e processuais que possibilitassem uma análise efetiva da sua demanda. Estavam em causa elevados riscos pessoais – tratava-se da prática da sua profissão enquanto atleta de competição a nível internacional – e uma faceta da sua existência e da sua identidade, o que implicaria uma estreita margem de apreciação do Estado suíço.
Nesse caso, a requerente sustinha-se em argumentos credíveis e robustos que sustentavam a discriminação em razão do sexo e das características sexuais, o que implicaria que tivessem de ser avançados motivos particularmente ponderosos e convincentes que justificassem aquele tratamento diferenciado, sujeitos a uma análise detalhada e cuidadosa por parte daqueles órgãos decisores (o que não sucedeu).
Esta decisão é de suma relevância não só pelo seu desfecho, mas também pelas várias considerações do Tribunal, das quais se destacam três. Desde logo, a inclusão das “características sexuais” enquanto fator protegido no âmbito da proibição da discriminação, o que permitirá sustentar futuras queixas trazidas por pessoas intersexo, no âmbito da Convenção.
Depois, a preocupação demonstrada quanto a questões relativas à (in)validade do Regulamento, levantadas (porém não respondidas) pelo Tribunal Arbitral do Desporto, nomeadamente quanto i) aos significativos efeitos secundários causados pelo tratamento hormonal; ii) à potencial inaptidão das atletas de se manterem em cumprimento das exigências do Regulamento de DSD e iii) à ausência de provas de que as atletas visadas gozam de uma vantagem significativa nas corridas de 1500 e 1600 m.
E, por fim, o apelo a intervenções de organismos internacionais de direitos humanos que chamam a atenção para a discriminação em relação às mulheres, particularmente às atletas intersexo, no domínio desportivo, e no contexto da aplicação de regulamentos como o Regulamento de DSD – tive oportunidade de, noutro momento, lançar críticas ao regulamento em causa, entretanto, atualizado em março deste ano.
As tumultuosas derrotas e vitórias de Caster Semenya ficam na história do atletismo e dos direitos humanos das pessoas intersexo. Contudo, a (mais longa) corrida de Semenya só terminará quando as entidades desportivas, internacionais e nacionais, acatarem, nos seus regulamentos e nas suas práticas, o discurso atual dos direitos humanos, desta vez, também reconhecido pelo TEDH.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990