Museu do Tesouro Real: sete anos antes (2017-2023)
A solução museográfica foi desenhada tendo em consideração a contingência do espaço disponível e um acervo que foi ampliado no final do processo.
Sendo visado (na qualidade de responsável da equipa de Design) no artigo de opinião publicado em 24 de Junho, sob o título Museu do Tesouro Real: um ano depois, venho solicitar publicação em defesa do direito público à informação e do bom nome da equipa que coordenei, constituída por B. Almeida, C. Providência, D. Teixeira, E. Smet, E. Soares, G. Casella, N. Enes, M. Providência, M. Vairinhos, M. Palmeiro, P. Almeida, P. Sousa, R. Pereira e R. Ribeiro.
Enquanto opinião de grupo de consultores científicos externos, o artigo acima referido faz identificação crítica de falhas, solicitando intervenção na iluminação, exposição de certas peças e textos, necessidades essas que verificámos ainda antes da abertura do museu.
Pelo teor do artigo percebemos que a divergência de critérios sobre a museografia — caracterizada no texto como “erros” do design —, terão origem na “falta de diálogo” com os consultores científicos. “Erros” que na sua generalidade se estendem ao núcleo da Baixela Germain, à falta de critério na seleção e hierarquização de peças e à baixa iluminação da exposição.
1. Seria ingénuo pensar que o Estado português (proprietário dos acervos) e a Associação de Turismo de Lisboa (que tutela a exploração e investimento no Museu do Tesouro Real) depositassem a responsabilidade de investimentos na ordem dos 3 milhões de euros, numa equipa de design, sem a direção e aprovação de todos os trabalhos.
O projeto de museografia (selecionado em concurso e definido por caderno de encargos), foi detalhadamente desenvolvido, aprovado núcleo a núcleo, peça a peça, ao longo de 5 anos (2017-2022), com reuniões semanais nos últimos 2 anos, então coordenadas pelo Dr. Pedro Moreira, gestor em representação da ATL. Nenhuma decisão de projeto foi alguma vez assumida sem o conhecimento e acordo do Dr. Pedro Moreira, Diretor executivo, do Doutor José Alberto Ribeiro, Diretor científico do MTR e do Palácio Nacional da Ajuda, bem como do Arquiteto João Carlos Santos, Diretor-Geral do Património Cultural (DGPC).
2. Embora assumindo riscos, pela data de abertura, aceitámos a inauguração do museu antes da sua validação por um período experimental de testes e melhoramentos, previsto no cronograma. Os problemas detetados após a inauguração, foram identificados, orçamentada, proposta e validada a sua reparação, processo agora gerido pelo novo Diretor executivo, Doutor Nuno Vale.
3. O grupo científico que assina a comunicação publicada, refere a impossibilidade de encontrar soluções consensuais para o projeto de design. Realmente participámos em longas sessões de debate, indecisão e regressão sobre matérias anteriormente aprovadas, prejudicando o desenvolvimento dos trabalhos, o cumprimento de prazos e orçamentos. A falta de consenso começou, desde logo, pela dificuldade demonstrada por alguns comissários científicos, no reconhecimento do contributo do Design, ignorando a autoria da mediação cultural e criativa com os públicos, responsabilidade que legitimamente se impunha ao ter ganho o concurso.
4. Antes da equipa de design tomar decisões, visitou outros museus congéneres, discutindo modelos e desenvolvendo sistemas que respondessem cabalmente aos desafios deste museu, recusando-se, desde logo, a adotar o sistema clássico de vitrinas forradas a veludo azul marinho, com conjuntos de joias pendurados por alfinetes.
Ao contrário do referido, a execução do museu não “avançou com um nítido alheamento ou descarte das recomendações e pareceres especializados, nomeadamente quanto aos materiais e à iluminação mais adequados à exibição de joalharia, ourivesaria ou têxteis”.
5. Mais especificamente em resposta às três ordens de críticas acima identificadas, comecemos pela denunciada “falta de respiração e hierarquia” da exposição.
A solução museográfica foi desenhada tendo em consideração a contingência do espaço disponível e um acervo que foi ampliado no final do processo, com a integração de mais 276 peças (passando de 723 para 999), nomeadamente no Núcleo das Joias da Coroa, o que condicionou a visibilidade e hierarquização das peças.
Por outro lado, o acrescento de peças acompanhadas pelas extensas legendas de contextualização propostas pelos comissários, condicionaram o corpo de letra das tabelas, alvo de críticas do público — situação já avaliada, corrigida e em implementação.
6. As figuras encenadas e vídeo-gravadas que emprestam escala e cor à Baixela Germain — mesa com conjunto de pratas cinzeladas monocromáticas —, inicialmente propostas e aceites por permitirem melhor contextualização para o grande público, foram previstas em reprodução desfocada para que não se impusessem ao acervo, nem introduzissem dúvidas históricas. No entanto, por vontade unânime da direção, foram reproduzidas na sua versão focada, merecendo grande adesão do público e medias sociais.
7. Parece-nos estranha a observação de que a iluminação da exposição fosse insuficiente, já que os comissários científicos conhecem bem os baixos valores de iluminação recomendada para as peças impostos pelo caderno de encargos – entre os 50 e os 200 lux. A iluminação de circulação implementada (sob correção) recorreu a rodapé luminoso com reforços pontuais de projetores, garantindo os valores de iluminação e segurança regulamentares. A exposição parece estar bastante às escuras, implicando um período de adaptação retiniana na transição do espaço exterior, sobre iluminado.
8. A autoria da museografia caracteriza-se pela mediação cultural e criativa com os públicos. Ao dividir-se o museu dos designers, do museu dos cientistas, ignora-se a função social do museu e a sua necessária mediação criativa, que é hoje condição da sua própria sobrevivência. O enorme investimento que, cada vez mais, os museus implicam, justificados pelos meios de segurança, tratamento do ar, conforto dos visitantes, restauros, versatilidade e originalidade das soluções expositivas e meios complementares de informação videográfica e interativa, implicam um serviço à comunidade que não se esgota, simplesmente, na apresentação lacónica de acervos, mas à mobilização dos públicos, se não mesmo à imersividade da sua experiência emocional e empática.
A questão de investigação museológica estará na conciliação entre o papel museal de disciplinador social, com o de libertador social através da subjetivação dos acervos — e já não da objetivação, como era o programa museológico do século XVIII; não se trata já da promoção do objeto, mas do sujeito que o interpreta a partir da sua própria experiência existencial.
Aquilo que procurámos realizar no Museu do Tesouro Real foi uma exposição e uma experiência únicas, privilegiando o público, valorizando as peças na condição da sua conservação, seleção e enquadramento científico, para que se pudesse operar a subjetivação pelo público e, consequentemente, a sua apropriação consciente, isto é, crítica e identitária.
9. Se, atuar sobre um tesouro patrimonial é cuidar do que ele transmite (cabendo) ao Museu do Tesouro Real a responsabilidade de comunicar um legado histórico e artístico, também se verifica que sem público não haverá museu e sem museu não haverá acervo; ora, sem acervo não haverá memória e sem memória não há nada.
10. Não quero perder a oportunidade para deixar o testemunho do enorme esforço e empenho da equipa científica interna do Palácio da Ajuda, G. Cordeiro, L. Leitão, M. Santana, M. J. Burnay, M. Tavares, T. Maranhas e T. Pinhal, e particularmente do Doutor J. A. Ribeiro pelo seu enorme empenho na arbitragem de conflitos e negociação com outros museus e instituições, assim garantindo silenciosamente a conclusão do atual museu que, no entanto, será sempre um projeto em desenvolvimento aberto destinado à superação de si próprio.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico