A triste história de Cristiano Ronaldo
A minha dúvida é: ele não sabe ou não quer saber o que se passa na Arábia Saudita e no resto do mundo por causa da Arábia Saudita?
O planeta equilibra-se entre jogos de poder duma dimensão mundial e duma complexidade infinita, em que todas as análises se tornam redutoras na compreensão do mundo, mas também há muita coisa que depende da nossa acção individual. Muita mesmo. E a beleza da vida é sermos nós que a construímos com as nossas opções e decisões. Eu acho que a forma mais bonita de olharmos para a vida é vivermos como se fosse um livro que nós estamos a escrever e quando chegarmos ao fim da vida, vamos querer ler esse livro. Se pensarmos assim, vamos todos querer ter histórias bonitas das quais nos orgulhamos. Não me parece que as marcas da roupa ou os extras que pusemos no carro venham a tornar a nossa história mais bonita. Agora aquele dia em que ajudamos alguém, vai nos aquecer o coração para sempre.
E nessa medida a história que o Cristiano Ronaldo está a escrever é muito triste, e muito feia. A minha dúvida é se ele não sabe ou se não quer saber o que se passa na Arábia Saudita e no resto do mundo por causa da Arábia Saudita?
A monarquia que rege a Arábia Saudita é dos regimes mais horrendos e criminosos do mundo. E as ligações ao futebol não são rebuscadas, são directas à liderança do Príncipe Bin Salman.
E nós portugueses ou europeus somos santos? Nada disso. Nós vendemos armas para as guerras eternas em África que são o maior flagelo da humanidade nos dias de hoje, e isso também é criminoso e asqueroso que façamos negócios à custa do sangue dos pobres.
Mas o que a Arábia Saudita faz ao mundo, faz do Putin parecer um menino do coro. A lista é tão extensa que nem sei por onde começar:
1. Tratam as mulheres como lixo, numa total discriminação escrita na lei. Há uns anos, a mulher de um diplomata britânico estava grávida e como tal a volume da barriga fez-lhe subir ligeiramente a túnica comprida, supostamente até ao chão, e foi espancada pela polícia por ter os tornozelos à mostra.
2. Executam homossexuais, Xiitas ou qualquer voz de discórdia, só porque sim, neste que é o país com mais sentenças de morte do mundo, onde em 2022 num só dia executaram 81 homens.
3. Tratam os imigrantes como escravos. Ficam-lhes com o passaporte, ameaça-nos de morte e submetem-nos a trabalhos forçados a seu bel-prazer.
4. Cortaram o jornalista Khashoggi aos pedaços na embaixada em Istambul, um famoso jornalista cujo “crime” foi ser crítico deste regime de assassinos.
5. No Iémen bombardearam um autocarro cheio de crianças onde morreram 26, mas isso não é nada comparado com as cerca de 100.000 crianças que morreram à fome no Iémen, pelos bloqueios impostos pela Arábia Saudita.
6. Recusaram-se a receber refugiados da guerra da Síria e mais tarde do Iraque, apesar de falarem a mesma língua e professarem a mesma religião. É ilegal e acima de tudo desumano não acolher quem foge da guerra.
7. São os maiores autores morais do extremismo islâmico alimentando financeiramente e ideologicamente toda a paranóia que vem dos pensadores Whahabi que fomentam directa e indirectamente grupos como Al-Qaeda, Estado Islâmico ou Taliban que proíbem as meninas de ir à escola.
8. E como se não bastasse, são os maiores destruidores do futuro da humanidade, ao ser os maiores exportadores de petróleo, e se as emissões de CO2 per capita da Arábia Saudita fosse a média mundial, já teríamos subido a temperatura médica para mais 4ºC que é incompatível com a existência do ser humano na Terra.
Gente cheia de dinheiro e sem qualquer moral ou escrúpulos. Há dias uma comentadora no France 24 dizia irritada e emocionada como um desabafo da alma: “Deviam ter vergonha! Deviam ter vergonha o Benzema e o CR7. São mais do que bilionários e mesmo assim vendem-se ao dinheiro mais sujo do mundo. Eles deviam dar o exemplo, mas fazem exactamente o contrário. Deviam ter vergonha!” … e eu não mudaria uma vírgula, só me penitencio por às vezes não ter a coragem de dizer o que devia ser dito, como esta senhora o fez.
Depois da brutal desilusão do jovem Ruben Neves “nascido” no meu querido clube, e cuja a decisão me entristeceu de morte, foi também o treinador Luís Castro que outro dia, no Brasil onde ainda era treinador do Botafogo, quando confrontado com os jornalistas pelos rumores da sua ida para as Arábias, ouvi-o muito indignado a dizer algo do género: “... porque eu não sou hipócrita, essas perguntas é que são hipócritas, eu como qualquer pai tenho que assegurar o futuro dos meus filhos…” E eu pergunto: será hipócrita, ignorante ou simplesmente não se importa que morram os filhos dos outros para que os seus possam ter Ferraris com jantes em ouro?
Este chamado Sportswhasing da Arábia Saudita é nojento e é uma vergonha que tenha sido impulsionado por tantos portugueses, e depois de ouvirmos tantos indignados a querer cancelar o mundial do Qatar, parece que todos permitimos que CR7 seja simpatizante, no mínimo, dos crimes mais hediondos da humanidade sem que ele perceba que devia ter vergonha. Dinheiro e carácter nem sempre se cruzam, mas é o segundo que fica para a história.
Eu não fui a favor do boicote do mundial do Qatar apesar de já há muitos anos achar repugnante o dinheiro que vem da península arábica, pois já estive nas guerras que eles alimentam (principalmente a Arábia Saudita) e já vi as bombas deles caírem ao meu lado e matar civis inocentes, mas pesando os prós e os contras, acredito que o desporto é unificador e tem que estar acima das políticas, e o mundial foi uma oportunidade para que o mundo perceba as atrocidades que por lá se passam, e com isso acredito que o Qatar possa também pender no sentido dos direitos humanos.
E por isso apesar da desilusão de morte que estes jogadores e estes treinadores me causam, acredito na aproximação das diferenças para que possamos mais facilmente remar juntos contra os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime da Arábia Saudita, na esperança de um dia, ouvir algum destes corajosos no campo a ser corajoso na vida e dizer em voz alta, seja em que língua for: “Tratem as mulheres com igualdade. Tratem os homossexuais como seres humanos. Parem com a carnificina da guerra do Iémen, e despejem pelo autoclismo esses teólogos fanáticos e tarados que alimentam o extremismo islâmico e o terrorismo a ele associado.” E quem fizer isso, vai escrever uma página da sua história, e da história do mundo, muito bonita.
Eu nunca idolatrei o CR7 porque eu idolatro apenas a minha família, os meus amigos e depois aqueles excepcionais que lutam por um mundo melhor saindo do seu umbigo. Mas eu adoro futebol, e é também por isso que mesmo sendo um adepto fervoroso do FCPorto, adoraria que o CR7 tivesse voltado ao Sporting que lhe deu tudo o que ele tem hoje, e mostrado que tem coração, em vez de se deixar levar pelo encanto fugaz dos milhões do petróleo sujos e cheios de sangue, em detrimento do seu carácter.
Neste momento, para mim, a história do CR7 é muito triste e muito feia assim como de todos que seguiram as suas pegadas. Era só abdicarem de uns milhões dos tantos que já têm, por um coração humano e genuíno, e tinham uma história linda, feliz e seriam admirados para sempre. Mas as suas prioridades foram outras, e agora têm sangue nas mãos de crianças inocentes ao apertarem a mão ao príncipe criminoso.
É porque não sabem ou porque não querem saber?
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras