José Mattoso, o homem que deu tempo ao tempo
Entre palavra e silêncio, entre a vida na cidade e o retiro solitário, José Mattoso é talvez um dos historiadores que mais souberam dar tempo ao tempo.
Na Universidade Nova de Lisboa do início dos anos 1990, ter aulas com o professor José Mattoso era já saber do Prémio Pessoa, vê-lo na capa das revistas literárias ou nas entrevistas da televisão — e as aulas não terem nada que ver com tudo isso. Na pequena sala onde tínhamos História da Religião na Idade Média havia um distanciamento em relação ao mundo e uma mansidão que faziam da transmissão de conhecimento entre professor e alunos uma experiência — com toda a propriedade da palavra — verdadeiramente espiritual. A isso ajudava impressionar-nos a trajetória do professor, incluindo as suas duas décadas de vida monástica beneditina. Mas mais impressionante era o respeito e consideração com que ele tratava todas as nossas perguntas, mesmo as mais ingénuas, incluindo quando confessava nunca ter pensado no assunto e nos prometia uma resposta para a semana seguinte. E, na semana seguinte, a resposta vinha, refletida, contemplada, dando a cada um de nós dignidade na relação intelectual e o sentido de que cada pessoa pode ter algo de valor a acrescentar. As palavras de Mattoso transmitiam conhecimento. A sua atitude, sabedoria.
Nesses anos fazíamos uma viagem aos castelos da raia, no Alentejo e na Andaluzia. Em certa ocasião chegámos a Barrancos, e a mais humilde das câmaras municipais que nos acolheram naquele dia foi a que com uma generosidade mais sincera o fez. Nós, jovens, talvez não tivéssemos reparado nisso, se o professor Mattoso não tivesse feito questão de o dizer e se não se tivesse feito silêncio para o ouvir, como sempre acontecia sem ser necessária qualquer imposição. O olhar (naturalmente cristão) de José Mattoso fez daquele encontro um momento pedagógico que nos serviu para mais do que apenas como futuros historiadores.
Começo por estes pormenores porque são o contrário de insignificantes.
José Mattoso foi até à, véspera do dia de hoje, o maior historiador português vivo, e ficará para sempre como um dos maiores historiadores do nosso país. Identificação de Um País, nos seus dois volumes intitulados “Oposição” e “Composição”, é uma daquelas obras que são de leitura imprescindível sobre o nosso país, a par talvez apenas com Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro. A sua História de Portugal em oito volumes, um merecidíssimo sucesso editorial, está em muitas das nossas casas e é uma obra à qual podemos voltar não só para ler José Mattoso como para ver a herança que dele ficou nos tantos historiadores e historiadoras que ele chamou para consigo colaborarem e assim se tornarem mais conhecidos do grande público. De uma lista de títulos abarcando décadas de produção, vale menção especial o seu Afonso Henriques, livro que tinha sido começado pelo seu discípulo Luís Krus, que morreu prematuramente, e que Mattoso fez questão de terminar. Para mim, que não sou medievalista, merecem revisitas frequentes os livros e ensaios de teoria e metodologia da História, de A Escrita da História a Naquele Tempo.
Todos os historiadores dão importância à dimensão do tempo e à natureza da memória. Ainda mais um como José Mattoso, que tão bem conhecia a obra de Santo Agostinho, que escreveu como ninguém sobre o tempo e a memória. Mas nas suas oscilações entre escrita e reflexão, entre palavra e silêncio, entre a vida na cidade e o retiro solitário, José Mattoso é talvez um dos historiadores que mais souberam dar tempo ao tempo. O tempo de reflexão de que o tempo precisa para que se consiga escrever sobre ele.
E, no entanto, talvez muita gente ache, por ter sido José Mattoso monge e historiador, que a sua vida foi de recolhimento apenas. Na verdade, nem só a contemplação, nem só a ação, que mais do que coexistirem, se sucediam na sua vida, farão justiça ao seu percurso. Ele ora se aproximava de um ou do outro polo. Deu um grande contributo a Portugal como diretor do Instituto Português dos Arquivos, primeiro, e da Torre do Tombo, depois. Já no novo século, surpreendeu todos fazendo o mesmo por um novo país, Timor-Leste. O seu empenho cívico, o seu sentido da cidadania ativa e exigente e a generosidade com que se entregou a causas do seu país e da humanidade pautaram de forma igualmente relevante a sua vida.
Não sendo medievalista, segui o meu mestre António Hespanha — para mim, o outro grande historiador português do nosso tempo — pelos caminhos da história moderna. E durante décadas não vi mais o Professor Mattoso. Se me perguntassem, diria que ele nem se lembraria de que fui seu aluno. Até que em 2015 fui surpreendido com uma carta dele apoiando o Livre, de que depois foi mandatário na sua candidatura Livre/Tempo de Avançar. O texto que então nos enviou, a carta mais admirável que já recebemos, e logo de alguém como José Mattoso, terminava com uma das parábolas menores do Novo Testamento: a do grão de mostarda, a menor das sementes, mas que pode dar uma grande árvore. Não mencionava que esse grão de mostarda continha em si o Reino dos Céus, mas creio que o que ele queria dizer ao lembrá-lo era que o grão de mostarda era como qualquer um dos nossos gestos cívicos, e que cada um de nós ao tomá-los a sério pode com isso fazer nascer árvores tais “que as aves podem pousar à sua sombra”.
Gostaria de lho ter perguntado, mas a timidez e a reserva fizeram com que um reencontro sempre desejado nunca tenha ocorrido. Aí, sim, talvez a reverência que todos os seus alunos lhe tinham tenha dificultado para muitos de nós a maior proximidade que com ele gostaríamos de ter tido. Mas quando até o menor dos gestos nos muda, de muito tempo precisamos para estar à altura do que aprendemos.