O sertão é aqui — por baixo do cimento arrancado da Jaceguai
Não só a antropofagia nos une; também um certo messianismo ajuntou os Brasis no que eles são. Zé Celso saiu de cena no ano 469 da deglutição do Bispo Sardinha. Mas não morreu, ficou encantado.
Os trabalhos de Zé Celso (1937-2023) que inauguraram a Tropicália tiveram uma segunda vida, com as remontagens, 50 anos depois, de O Rei da Vela (1967), de Oswald de Andrade; e de Roda Viva (1968), de Chico Buarque, em 2017 e 2018. Se no final dos anos 1960 os dois espetáculos eram reflexo da ditadura militar, estas duas remontagens mostraram as regras de morbidez que, desde 2016, vigoraram em Brasília.
Para conhecer a história recente do Brasil, basta seguir o fio da vida do encenador. Entre 2002 e 2006, assinalando o centenário de publicação de Os Sertões (1902), o Teatro Oficina montou um ciclo de cinco espetáculos a partir da obra de Euclides da Cunha, profuso texto de descrição do Sertão, relato da Guerra de Canudos (Bahia, 1896-1897) e hagiologia da figura messiânica de Antônio Conselheiro. A dramaturgia, feita por Zé Celso a partir das três partes do livro, foi dividida em cinco partes: A Terra (2002), O Homem I (2003), O Homem II (2003), A Luta I (2005) e A Luta II (2006). Cada espetáculo tinha cerca de cinco horas. Em conjunto, as montagens duram um dia e uma noite, ao fim do qual é dada a ver, com ironia tropicalista, a essência da gente brasileira.
Durante um dos espetáculos, intitulado O Homem I, que corresponde a uma secção da obra monumental de Euclides, Zé Celso encarnava tanto o Bispo Sardinha quanto o próprio Antônio Conselheiro. Na cena em que o Bispo Sardinha é comido, Zé Celso não resiste: — "Sardinha, você é mais gostoso que seu nome", diz um dos Caetés. — "Que peixe, que nada, que homem!" — diz outro. O próprio Sardinha conclui, em bom português europeu: — "Estou-me a vir!" E os Caetés rematam: — "Começa hoje o primeiro ano da Era, com a deglutição da Fera. Nasce povo sem raça… Brasileiro Vira-Lata!" No final do espetáculo, na figura de Conselheiro, "grande homem pelo avesso", Zé Celso encarna a esperança que então, em 2003, tinha sido passada, com a faixa presidencial, de Fernando Henrique Cardoso para Lula. O projeto teve o apoio da Petrobrás desde o início dos trabalhos, em 2000.
Em 1969, quando trabalhavam na montagem de Na Selva das Cidades, de Bertolt Brecht, a arquiteta Lina Bo Bardi já queria que o Teatro Oficina levasse à cena Os Sertões, de Euclides da Cunha: "O sertão é aqui, é só arrancar o cimento da [rua] Jaceguai", dizia ela a Zé Celso. Durante as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Lina tinha visto a adoração espontânea do povo da Bahia à estátua de Antônio Conselheiro, feita por Mário Cravo Jr., à imagem de Cristo. Agora, o profeta era o artista, apontando a figura do nordestino como messias. Num depoimento a Alexandra Lucas Coelho neste jornal, Zé Celso não poderia ser mais explícito: "Lula, nosso já quase ex-presidente, é de uma cidade chamada Caetés, da mesma tribo destes índios [Caetés, em Pernambuco]". A encenação de Os Sertões é um monumento a esses primeiros anos do milénio.
Zé Celso estava a trabalhar na adaptação de A Queda do Céu, de Davi Kopenawa, trocando a visão dos citadinos que inventaram os sertões pelas palavras dos nativos. Como seria este novo trabalho, nesta nova era Lula, também ela uma remontagem dos tempos? A pergunta sem resposta é a profecia. Zé Celso não morre, fica encantado, como um profeta representante de Dioniso na terra, sempre lançando luz sobre o Brasil inventado por ele, por Guimarães Rosa, por Oswald de Andrade, por Euclides da Cunha, por tantos outros, chegando onde tudo se dá, debaixo do chão do Bixiga, bairro de São Paulo onde se fixou o Teatro Oficina, puxando para cima o sertão, enfim rompendo o asfalto e o betão armado.