É preciso sair da bolha para ver a bolha
A postura purista e fundamentalista dos profissionais de nutrição é um entrave sério à criação de empatia e confiança no processo de gestão do peso.
Há algumas semanas, a Organização Mundial de Saúde lançou uma recomendação na qual considera que os edulcorantes não devem ser utilizados como uma estratégia para a perda de peso e redução do risco de doenças não transmissíveis. Sobre a mesma, foram já feitas várias análises do ponto de vista técnico e prático, por isso esta guideline serve apenas de mote para uma reflexão mais profunda sobre o grande hiato que por vezes existe entre a investigação científica e a prática clínica numa área tão específica como as ciências da nutrição.
A análise quer de um indivíduo quer de um alimento deve sempre ser feita na sua plenitude. Uma pessoa não é só a sua percentagem de massa gorda e massa muscular, perímetro de cintura, colesterol, glicemia em jejum, pressão arterial, mas sim a soma e interacção entre todos estes valores. De igual forma, um alimento não é apenas o seu teor de calorias, gordura saturada, açúcar, proteína, colesterol, fibra, vitaminas e minerais, é a orquestra entre todos estes constituintes, não esquecendo os mais importantes, que não vêm nas tabelas de composição nutricional: o sabor e as memórias.
Qualquer nutricionista intelectualmente menos honesto pode pegar em qualquer ponto “fraco”, “forte”, ou até “fictício” de um determinado alimento e demonizá-lo ou endeusá-lo para provar um ponto. Pode fazer isso em consultas e redes sociais para assustar/cativar pacientes e pode fazer isso em aulas para doutrinar alunos. Neste caso aconteceu com os adoçantes e os refrigerantes, mas já aconteceu antes com o leite e suas “pseudo” hormonas e antibióticos, com o pão e outras fontes de glúten, com a fruta e a frutose, com a whey/creatina e saúde renal (ou confusão destes suplementos com esteróides anabolizantes), e por aí fora, até todas as pessoas comuns acharem (legitimamente) que “se tudo faz mal, então mais vale comer o que quiser”.
O curso de Ciências da Nutrição e a profissão de nutricionista são ambos muito recentes (a mais antiga faculdade de nutrição do país só tem 47 anos e a formação exponencial e entrada em catadupa de nutricionistas no mercado surgiu nos últimos 10-15 anos). Ou seja, não há nada pior para alguém com excesso de peso ou obesidade do que ouvir de um recém-licenciado com pouca experiência (quer de vida, quer clínica) ou de um nutricionista “bacteriologicamente puro” que a alternativa ao açúcar não são os adoçantes, mas sim apenas água e fruta.
A gestão do peso pode ser definida como a arte de se tomarem as melhores opções alimentares possíveis em cada contexto em que nos vemos envolvidos:
– não faltam estudos a comprovar que as carnes vermelhas têm na globalidade um impacto pior na nossa saúde do que a ingestão de peixe. Na prática, é melhor comer um prego em pão sem molhos como opção de almoço do que filetes de pescada fritos com salada russa com maionese como prato do dia;
– não faltam estudos a comprovar que a manteiga é rica nos ácidos gordos que mais elevam o colesterol. Na prática, a sua manutenção diária em quantidades controladas num plano alimentar pode ser fundamental para o cumprimento do mesmo (sobretudo em pessoas que vão para a consulta previamente desmoralizadas e preparadas para aquilo que o nutricionista vai “cortar” ou “proibir”);
– não faltam estudos a comprovar que o azeite e os frutos oleaginosos (nozes, amêndoas, avelãs, etc.) possuem um impacto positivo na saúde. Na prática, quando há um plafond calórico reduzido para gerir, estes alimentos têm de ser restringidos em prol de um bem maior que é o emagrecimento (até porque esse mesmo crédito de gordura pode ser aproveitado para outros alimentos com maior valor hedónico como o chocolate);
– não faltam estudos a comprovar que as carnes processadas e os cereais refinados são dos grupos alimentares com maior potencial inflamatório, mas, curiosamente, os mesmos estudos também mostram que o potencial inflamatório de ter obesidade é significativamente maior do que o de qualquer grupo alimentar. Na prática, inserir alimentos “fetiche” como presunto e cereais açucarados (para quem deles gostar) em planos de défice calórico para tornar o processo de perda de peso menos doloroso do ponto de vista sensorial pode ser uma óptima estratégia;
– faltam estudos (em humanos) a comprovar inequivocamente que os edulcorantes podem ter efeitos negativos na saúde. Na prática, a troca de açúcar por edulcorantes poupa a ingestão de imensas calorias diariamente e são o constituinte mais inócuo em ambientes onde também existem hambúrgueres, pizas, pipocas, bebidas alcoólicas e demais contextos em que se podem ingerir refrigerantes light.
O ser humano é por natureza imperfeito, comer sabe bem, e até é dos únicos e mais baratos prazeres que podem ter ao seu dispor as pessoas que têm o resto da vida num caos. A quem toda a gente falhou, mas a comida está sempre lá.
A postura purista e fundamentalista dos profissionais de nutrição é um entrave sério à criação de empatia e confiança no processo de gestão do peso. É preciso estar dentro da bolha da investigação e da produção científica de forma a estar actualizado, mas é fundamental saber sair da bolha e perceber que qualquer novo estudo ou guideline é totalmente contraproducente se estiver a piorar a relação com a alimentação da pessoa que eu tenho à minha frente.