Oportunista, desigualitária, desproporcionada, ilógica e contraditória
1. Sem dúvida que para todos nós a vinda do Papa Francisco será um grande momento de conversão espiritual, como também para muitos mais um tempo de são convívio entre jovens de todas as latitudes do Mundo.
A tudo isto acresce a alegria de ter em Portugal o romano pontífice da Igreja Católica, sendo certo o carinho especial que este Papa merece pelo modo como tem exercido o seu espinhoso múnus, em tempos de turbulência e de renovação.
2. Claro que não podia faltar o “aproveitamento político oportunista” da sua presença com a infeliz ideia de se aprovar uma lei de perdão genérico e amnistia em favor dos cidadãos até 30 anos de idade, nos termos da proposta de lei n.º 97/XV/1.ª, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude.
Sou por princípio contra qualquer clemência penal geral que suscite espúrios interesses partidários quanto a atividades religiosas, até por uma questão de separação do Estado do fenómeno religioso, além de que aquela iniciativa é de natureza espiritual, nela não se devendo intrometer a justiça penal do Estado.
É certo que esse poder existe na Constituição. Mas não é menos verdade que esse poder tem sido exercido muito limitadamente somente na versão de clemência penal concreta pelo indulto e comutação de algumas penas, prática presidencial em drástica redução.
3. Se as minhas reticências são elevadas quanto a essa competência em tese, elas redobram, no seu vigor, observando o modo como vai ser exercida, pois que será um perdão genérico de um ano de pena de prisão, mas tão-somente abarcando pessoas até 30 anos de idade em crimes com pena máxima de 8 anos...
Deve haver algo que me está a escapar para perceber a racionalidade subjacente à medida porque ela é:
- Desigualitária: qual o sentido de a restringir às pessoas até 30 anos, quando se sabe que o significado da clemência jamais se encerra num critério “etário”, não esquecendo que a jornada em causa envolve toda uma comunidade de fiéis, não sendo apenas para os jovens?
- Desproporcionada: qual o sentido de perdoar sempre um ano de pena – portanto o mesmo tanto para um crime punido com dois anos como para um crime punido com oito anos de prisão – não havendo qualquer lógica percentual, como devia suceder, a qual tem de subjazer a uma ponderação de “misericórdia” penal?
- Ilógica: qual o sentido de não perdoar a pena nos casos de condenação de “roubos de residências”, mas aceitar-se perdoar penas de prisão nos condenados por “furto” ou “roubo”, perante a violação de um mesmo bem jurídico?
- Contraditória: qual o sentido de, perante o perdão de penas de prisão, não “apagar” as penas aplicadas por infrações financeiras no âmbito da responsabilidade financeira, ao mesmo tempo que se incluem certas contraordenações de natureza meramente administrativa?
4. Tenho bem presente as contradições lógicas e valorativas que contaminaram a aprovação de um perdão genérico de penas durante a pandemia da covid-19, que não possuía razão de ser: jamais se podia aplicar abstratamente quando as condições de especial sofrimento dos reclusos causadas por essa pandemia só podiam ser aferidas em função das suas condições concretas de reclusão, unicamente solucionáveis com medidas de indulto ou comutação de penas de prisão.
Como também tenho muito viva na minha memória que foi do Partido Socialista que partiu a iniciativa de fazer aprovar uma amnistia aos criminosos terroristas das FP-25, que cobriu o país de vergonha, para o que muito contribuiu o Tribunal Constitucional, não tendo na altura considerado essa lei inconstitucional por evidente violação do princípio da igualdade.
Eis uma proposta legislativa com tudo para ser arbitrária, a qual, na sua configuração, levantará os maiores problemas de justiça e de equidade, que não contribuirão para a estabilidade do edifício da justiça penal, que tão abalado tem sido nos últimos tempos, bastando recordar os escândalos que se sabe.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico