A “selfie” perfeita

Aqueles cinco tripulantes são os mesmos turistas que não me saíam do caminho, obstinados pela própria imagem, indiferentes ao mundo que grita em pânico em seu redor.

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O que terá motivado aqueles milionários a entrar de livre vontade num túmulo submarino? Enquanto lia sobre o caso, vinha-me continuamente à cabeça a imagem do turista perante a inevitável “selfie”, condenada tanto ao esquecimento como ao bocejo de quem a observa com sorriso amarelo, salivando pela oportunidade de mostrar de volta o seu próprio Narciso no ecrã estafado. “Estive lá” parece ser o refrão das viagens dos nossos tempos, com preços que variam entre um milhar e um milhão de euros.

E porque o pensamento tem destas coisas, dei por mim a recordar um episódio recente, passado comigo. Pedalava na Ponte de D. Luís, no tabuleiro de cima, coisa que nem sequer se deve fazer; a minha ousadia, porém, é a típica do burguês, capaz apenas destas pequenas rebeldias. Chuviscava. O piso, feito de aço, convidava à prudência: coloquei-me estrategicamente no meio do tabuleiro, onde menos pudesse correr o risco de atropelar ou de ser atropelado por algum turista, das dezenas que por lá andam à caça da fotografia inesquecível, aquela mesma que irão mostrar uma vez sem exemplo ao amigo estafado.

Com alguma apreensão, vejo que à minha frente, lá ao longe, um casal asiático se alinhava geometricamente comigo. Sabendo da dificuldade que há em mudar de direcção, pois os carris facilmente podem fazer tombar o ciclista – ainda para mais com o piso molhado –, toquei uma, duas, três vezes a campainha, tragicamente desamparada. Nada acontecia. A mulher do casal, que estava a ser fotografada, talvez me visse, mas o momento era demasiado perfeito: a luz, o enquadramento, o vestido meneado pelo vento, tudo se conjugava. Perante os óbvios sinais que o universo me enviava, devia ter interrompido imediatamente a marcha. Mas travar sem razão gritante é a suma traição do ciclista. Bradei já um pouco desesperado: “Please, please, please!” Nada, uma vez mais.

Acabou por acontecer o inevitável: travei a fundo, a roda enfiou-se-me no carril e estatelei-me no chão, com a graciosidade de um bailarino gordo que nunca aprendeu a dançar. Irritado, dei por mim a praguejar em inglês, para ser bem entendido, numa profusão de impropérios dignos da Netflix, devidamente intercalados com um discurso vagamente moralista, em que lamentava as “selfies” e a obsessão irracional dos nossos tempos pela auto-imagem. Um sermão bastante descabido e ainda mais descompensado, bem vistas as coisas.

O casal olhava-me piedosamente, e pedia repetidamente desculpa. Também eu pedi imediatamente perdão por ter perdido a calma. Compus-me, observei desapaixonadamente uma pequena escoriação no cotovelo, montei a bicicleta e segui caminho.

Perguntará o leitor: que terão estes turistas a ver com as cinco almas que implodiram no oceano? Procurando entender por que voou o meu pensamento para aquele episódio, chego a uma triste conclusão. O mais fácil de concluir desta parábola que o inconsciente me pregou é que aqueles cinco tripulantes são os mesmos turistas que não me saíam do caminho, obstinados pela própria imagem, indiferentes ao mundo que grita em pânico em seu redor, em busca do auto-retrato instantâneo.

Mas a coisa é bem mais grave do que isto. É que também eu sou esse turista. Aliás, todos nós somos, quando vemos centenas de refugiados vir de encontro a nós e não arredamos pé, ao mesmo tempo que pagamos para entrar no nosso próprio túmulo, que em breve estará debaixo do mar.

O problema não está, de facto, nesses cinco caprichosos estarolas, nem sequer nos media, que dão mais relevância à notícia do submarino do que à de um barco que vomita cadáveres, cuja exacta centena nem sequer se consegue determinar. O problema somos mesmo nós, que arfamos pelo último grito tecnológico, nós que não abdicamos das duas toneladas e meio litro de gasolina que, todos os dias, nos fazem andar meia dúzia de quilómetros, nós que queremos o bife todos os dias.

E a culpa é também nossa, quando na hora de votar não queremos gente que tenha o coração no sítio certo, desconfiamos de almas atentas, daquelas que ainda manifestem a incomum capacidade de se culpar a si mesmas pelo que está a acontecer no mundo, e estão dispostas a fazer algo por isso. Queremos, isso sim, políticos que falem alto, que gritem “vergonha” sem a sentirem, ou os que nos acenem com mais meio litro de gasolina. E, sobretudo, queremos a “selfie” perfeita.

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