Em Junho, Alfama consegue levantar, apesar do peso do turismo, a bandeira do seu bairro
Turistas e alojamentos locais fazem antever um futuro “sem as gentes de Alfama”. O livro e tributo de Ricardo Dias ao típico bairro lisboeta eterniza “a história da força de quem canta” pela marcha.
Entre o histórico Largo do Chafariz de Dentro e o edifício do Museu do Fado, há uma fila de tuk-tuks que se alinha sem pedir licença. Há vários anos que os curiosos forasteiros que espreitam pelos becos de Alfama superam largamente em número os moradores. Ali, com Junho a terminar, o cheiro a sardinha e pimentos grelhados já está prestes a migrar para o ano que vem, mas ainda se vende ginjinha e manjericos a preços para turistas. Este foi o mês dos arraiais e marchas populares e, por isso, ainda permanece tudo decorado em força, como dita a tradição. Porque há quem resista e insista em erguer a bandeira do bairro, não para satisfazer estrangeiros, mas pelo orgulho de continuar a fazer bater o coração de Alfama.
Mas está cada vez mais vazia a alma deste bairro, cujo futuro se adivinha “sem as gentes de Alfama, virado para o turismo e completamente descaracterizado”, aponta, depois de um longo suspiro, Rita Paulo, uma das últimas marchantes que ainda consegue pagar uma renda no bairro que representa de peito cheio. Mesmo com a elevada procura por habitação no centro de Lisboa, nas estreitas e íngremes ruas de Alfama há casas devolutas há mais de 20 anos, assegura esta mulher de 32 anos que, “mais ano, menos ano”, teme deixar também o sítio onde vive desde que saiu da maternidade.
O comércio local fechou portas onde agora abriram lojas de souvenirs: São “mais de 10” por rua, revelou a bairrista. “Sou capaz de passar uma hora no bairro sem ouvir uma palavra em português”, acrescentou o director da marcha mais premiada de Lisboa, João Ramos. O resultado está à vista: antes o turismo ia até ao típico bairro lisboeta “por causas das pessoas”, comenta Rita Paulo, hoje “os turistas que cá vêm, vêm ver mais turistas”, completou.
Em frente à casa camarária onde vive com os irmãos e o filho, estão já instalados três Alojamentos Locais (AL), disse ao PÚBLICO. Não causam incómodos de maior, mas onde na infância de Rita Paula se largavam as mochilas da escola para desatar a brincar, há hoje uma comunidade desconhecida, com dificuldades de comunicação face à diversidade das línguas que se falam. Deixar o filho de seis anos vir para a rua brincar já não é uma possibilidade pois não se conhecem os vizinhos, que mudam constantemente.
Mas se uns (que são poucos) ainda conseguem ficar, há outros que não têm a mesma sorte. Dos 50 marchantes – 25 mulheres e 25 homens – já só restam dez moradores do bairro e Flávio Vieira ficou fora dessas contas. Viveu 12 anos no Castelo com o avô, o que explica a alcunha pela qual é conhecido – “menino do Castelo” –, até serem obrigados a sair para que a sua casa desse lugar a um hostel, que até à data, por sinal, não avançou.
Foram depois viver para o Beco do Arco do Escuro, próximo da Igreja da Sé, mas como tantas outras famílias de Alfama, acabaram por ir para a periferia. “É impossível, seja em que bairro for, conseguir um T0 ou T1 por menos de 800 euros”, lamentou o homem de 29 anos. Está agora em Cascais, mas trabalha em Sintra. O que não o impede de marchar por Alfama há 11 anos.
Para ir aos ensaios chega a fazer entre 70 e 80 quilómetros, de segunda a sexta-feira, um esforço que pouco ou nada custa, como refere, “por amor à camisola”. Apesar de financeiramente ser “muito difícil”, não nega, a marcha é uma tradição familiar e constitui a raiz de algo que não pode desaparecer. “Havia dias em que nem jantava para estar às 21h30 nos ensaios”, contou ao PÚBLICO. Só às 23h30 conseguia regressar a casa.
A população de Alfama está cada vez mais envelhecida, revelou o director da marcha, que também lá vive. “Não é só no interior que há despovoamento”, alertou, no centro das cidades também. Há uma réstia de alegria: quando os jovens, que se juntaram fora da freguesia, fazem do bairro um “berçário constante dos filhos” porque deixam ali as crianças com os avós.
João Ramos sabe que não é só em Alfama que o turismo gerou uma “corrida ao pote” dos AL: “Os bairros estão superdescaracterizados” e esse “é um problema que está a afectar toda a cidade”, afirma Rita Paulo, que trabalha como assistente técnica da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. A marchante diz não ser contra o turismo, "muito pelo contrário", já que se trata de uma fonte de empregabilidade para muitos portugueses. No entanto, apela a um meio-termo: "Pensar no futuro sim, mas nunca esquecendo a nossa identidade, porque é assim que nos conhecem”, alerta.
Junho une bairristas, mas "o típico já não se vê"
Nos dias que antecedem o mês de Junho, os que se viram obrigados a deixar Alfama, motivados pela especulação imobiliária e pelo elevado custo de vida, regressam unidos pelos Santos Populares – é tempo de montar balcões e ver as marchas de Lisboa. “É a única altura do ano em que eu vejo as pessoas que já cá não moram”, explica Rita Paulo.
As típicas zaragatas entre mulheres bairristas que recorda ter assistido quando era mais nova e que “os turistas achavam imensa piada” deixaram de se ver pelas ruas. “Eles não percebiam nada, só percebiam as asneiras. Agora imagine as asneiras que não eram”, recorda, com um sorriso bem-disposto. Eram discussões a sério e os que assistiam “fartavam-se de rir”, mas “o típico já não se vê”, conclui a marchante.
No entanto, a marcha tinha por função pôr de lado todas as desavenças: com a emoção da sua chegada, as senhoras que outrora levavam a discussão para a agressão física, faziam as pazes e "agarravam-se a chorar”, ao sentir a força de quem canta. “Era lindo!”, exclama Rita Paulo, que começou a marchar aos 15 anos.
Para os que ensaiam para tornar a noite de Santo António na mais bonita de Lisboa, há um misto de emoções que “quem gosta verdadeiramente não consegue explicar”: a vaidade por estar fardada pela marcha de Alfama, o nervosismo por desfilar naquele dia e as memórias que surgem à cabeça, revelou a marchante.
Este ano, Alfama venceu todos os prémios por especialidade, excepto o desfile da avenida – foi a Bica que ficou com o título final. João Ramos acredita que a marcha funciona como um “bilhete de identidade do bairro”. Embora o número de pessoas que a compõem e continuam a viver lá seja “residual”, a força de quem canta “não foge”, diz o responsável, até porque a maioria provém de outros bairros próximos.
“Não era o cenário que gostava de ter narrado”
Para dar conta desta resiliência que nem a vaga avassaladora do turismo dobrou, surge agora a obra Marcha de Alfama – A história da força de quem canta. Nascido e criado em Alfama, numa relação intimista com o bairro de onde são também os pais e avós, Ricardo Gonçalves Dias é o autor do primeiro livro biográfico de uma marcha popular, no qual tenta eternizar o património e a herança deste pedaço histórico de Lisboa.
A marcha é também uma forma de conhecer a evolução do bairro. Prova disso é o tema interpretado este ano com o título Daqui não saio, daqui ninguém me tira, alusivo à mobilização forçada das gentes de Alfama para as zonas periféricas da capital. A última descrição do livro de Ricardo Dias explica precisamente como as temáticas escolhidos ao longo dos últimos anos são de apelo à protecção da tradição do bairro e ao flagelo que é a perda dos típicos moradores.
O escritor lamenta que o bairro esteja desertificado e tenha perdido “milhares de moradores nos últimos anos”. Seguramente, “não era o cenário que gostava de ter narrado”. A marcha permanece, porém, como um “ex-líbris” da freguesia, diz o homem de Alfama, a campeã das campeãs, que conta com 21 títulos arrecadados desde o seu primeiro cortejo em 1932.
Texto editado por Ana Fernandes