Nasceu numa família de mulheres fortes ligadas à terra, à natureza. Lembra-se de a avó materna, de quem herdou o nome, estar sempre no jardim, entre vasos e canteiros com orquídeas e avencas. Lembra-se de a ver sorrir, com a mãe e a tia, quando ela, ainda muito pequena, andava pelo campo de cesto de vime na mão a apanhar flores a que poucos davam importância.
“Foi sobretudo a minha tia, que era minha madrinha, que me passou este amor às plantas da serra e do jardim que lhe veio da minha avó. O que faço hoje é também uma homenagem a todas elas, às mulheres da minha família, às nossas memórias”, diz Joana Freitas, a designer floral por trás do Aura.Madeira, um projecto que combina plantas e conversa, bouquets de noiva e jardins tradicionais, ateliers em museus e passeios pela serra.
As homenageadas são Joana, a avó que gostava de camélias, Urânia, a mãe que ainda mantém um jardim, e sobretudo Filomena, a madrinha que a ensinou a olhar para todas as flores silvestres com devoção. Tal como elas, é entre as plantas da ilha, espontâneas ou cultivadas, que Joana Freitas se sente bem.
“Quando estou longe da ilha sinto falta das cores, dos cheiros, do mar. Parece banal dizer isto, mas não poder andar pela serra, não poder entrar nestes jardins, tem um efeito em mim, no meu corpo, na minha cabeça”, reconhece esta madeirense de 31 anos, que hoje vive na parte norte da Madeira, no Arco de São Jorge.
Joana Freitas sabe o que lhe pode fazer a distância porque viveu três anos no centro de Londres, trabalhando como ama, entre os 21 e os 24 anos. No regresso à ilha trazia o desejo de construir uma casa tradicional, daquelas que hoje atraem turistas a Santana, e de voltar a cultivar os terrenos dos avós maternos, à data em pousio.
O sonho da casa está ainda por cumprir, mas os terrenos de Joana e Agostinho Caldeira já têm a mão da neta que, entretanto, foi mãe e tenta passar a “ligação directa” à natureza aos dois filhos.
“São terrenos num lugar muito bonito aqui do norte da ilha, que não têm acesso de carro. Tento fazer tudo de maneira muito sustentável, sem químicos, e respeito a época de cada planta, não forço. Tenho lá espécies que estão a desaparecer, que dantes havia pelos caminhos, pelas encostas, nas hortas, e depois misturo estas flores e plantas selvagens com as que encontro nos jardins que conheço.”
Estes jardins integram uma rede que Joana Freitas está a criar, são parte do território onde procura a matéria-prima para os arranjos que começou por fazer só para os que lhe eram próximos até que, no ano passado, um amigo, um inglês dono de um B&B que lhe encomendava ramos sempre que havia hóspedes, a convenceu a promover o hobby a profissão.
Hoje faz arranjos florais para casamentos e outras festas, trabalha com hotéis e restaurantes, dinamiza ateliers e, igualmente importante, contribui para a preservação das espécies vegetais da Madeira, autóctones e exóticas, cultivadas ou espontâneas. E fá-lo nos terrenos da família, mas também nos jardins tradicionais do norte, na sua maioria propriedade de madeirenses com mais de 65 anos, muitos deles regressados a casa depois de anos emigrados.
“Gosto dos jardins tradicionais porque misturam hortícolas com as plantas selvagens e as cultivadas. Alguns têm até vinha, animais… Misturam antúrios, orquídeas e sapatinhos com ervilhas, favas, cebolas e abacateiros. E tudo numa grande harmonia, às vezes caótica, mas em festa, que tem muito a ver com a Madeira, com o amor dos madeirenses por tudo o que é verde”, explica Joana Freitas.
"As nossas flores vão ser bonitas noutro lugar"
Em festa está o jardim de Moisés e de Teresa Menezes, um dos casais que se associou à rede do Aura.Madeira. Joana Freitas visita-o com frequência e conhece-lhe os cantos. À entrada estão vasos onde por regra há antúrios, hortênsias ou roseiras, mas depois torna-se “desarrumado” — as palavras são da dona da casa, que viveu 13 anos com o marido na Venezuela —, com plantas a crescerem mais ou menos desordenadas, entre pequenas casas de madeira, uma Nossa Senhora em pedra e um “laboratório” improvisado, onde Teresa multiplica as flores que, generosa, gosta de partilhar, mesmo com quem acaba de conhecer.
Teresa cuida das plantas, Moisés da vinha e da horta, onde há abóboras e batatas-doces, cenouras e pepinos.
“Gosto de vir aqui e conversar com a Teresa e o Moisés, de aprender com eles. Noutros jardins do Aura, o estar presente, o ouvir, é ainda mais importante do que aqui, porque o Moisés e a Teresa têm-se um ao outro, têm família. Há jardins em que os donos estão muito mais sozinhos e o projecto acaba por ser uma forma de conviverem, de se sentirem úteis.”
Sempre que tem uma encomenda sem programa — “a maioria das pessoas deixam-me à vontade para propor o que eu quiser” —, Joana Freitas passeia pela serra e pelos jardins com que trabalha em Boaventura, São Jorge, Ribeira Funda ou São Roque do Faial até decidir que flores e plantas vai usar.
“Às vezes chego aqui e já sei o que quero comprar, outras deixo-me surpreender.” A seu lado, Teresa e Moisés sorriem porque sabem que é mesmo assim.
No seu jardim, onde há madeiras que ele apanhou à beira-mar e até uma ombreira com a data de 1769 que encontrou abandonada no Lugar da Boa Morte, no Caniço, há uma árvore rara, de pau branco, que tem uma madeira resistente, a mesma com que é feito o fuso centenário do lagar, ainda em funcionamento.
“Estas plantas são bonitas, mas não cheiram como as do campo. As selvagens têm mais cheiro”, diz Moisés, que trabalhou como jardineiro no Funchal e na florestação das serras. “É por isso que as podas altas são com ele”, acrescenta Teresa, pouco depois de tentar, em vão, que o marido não revele por que razão se chama “consola-viúvas” ao fruto da costela de Adão, planta de folhas grandes que nasce onde haja muita água.
“Na Madeira, quase sempre que se pede um arranjo floral, é tudo muito formal, vão-se buscar flores importadas daquelas que se encontram em qualquer lugar do país, em vez de se usar o que é nosso”, lamenta Joana Freitas. “O que eu faço no Aura é usar o que é da ilha ou o que aqui já se cultiva há muito, muito tempo. Vou à procura de outros cheiros, de outras texturas, uso muitas coisas aquilo a que a maioria não dá atenção, como as flores da cebola e da acácia.”
Por isso faz arranjos usando hortênsias e coroas de Henrique de muitas cores, espadinhas e bananeira em flor, cristas e rabinhos de porco, que vai misturando com trigo e aveias, narcisos e rosas em cacho, “daquelas muito antigas”.
“Agora tenho um bouquet de noiva para fazer e preciso de torrões de açúcar, mas tenho de ir a um jardim mais a norte, onde faça mais frio. Aqui o calor já chegou e eles abriram, não me servem.”
Teresa e Moisés têm também maravilhas, malvas e camélias, fetos, bromélias e até uma espécie de ensaião que é endémico do arquipélago. Nem sempre chegam a acordo quando se trata de identificar uma flor, mas nenhum deles duvida de que a laranjeira que têm no quintal é espontânea. “Nasceu sem aviso”, diz Teresa. “E sempre que as plantas e as árvores nascem sem aviso eu deixo ficar porque deve haver alguma intenção, deve ser porque nos querem dizer qualquer coisa.”
No seu jardim há ainda canteiros com salva, coentros e aipo junto à adega, não longe da mesa onde toda a família costuma reunir-se. “É no jardim que o madeirense também faz a festa”, acrescenta Moisés. “Gostamos de receber, de ver chegar as pessoas, de oferecer do nosso vinho, do que a horta dá.” E a horta dá favas. Teresa costuma prepará-las com molho de escabeche e servi-las só no dia seguinte, "que é como sabem melhor".
“Nesta casa a vida anda devagar e é por isso que vamos tendo tempo para a hora, a vinha, o jardim, os netos. Gosto que a Joana venha porque assim sei que as nossas flores vão ser bonitas noutro lugar.”
A Fugas viajou a convite da Associação de Promoção da Madeira