Uma vez mais, Rabo de Peixe está sob uma intensa rebentação de ondas mediáticas nos meios de comunicação social. Desta vez, as correntes foram agitadas pela série Rabo de Peixe e, após quatro semanas, finalmente o mar começa a acalmar-se e já se vê menos espuma das ondas da euforia do audiovisual português, que finalmente conseguiu ultrapassar o seu próprio trauma – agora já frequenta o lugar dos populares do recreio da escola do streaming.
O mar chão é a melhor altura para a pescaria, e como rabo-peixense sinto a necessidade de manifestar algum desconforto, que partilho com muitos conterrâneos. Esta série veio mexer nas feridas de uma comunidade muito particular. Nem sempre é fácil encontrar as palavras certas para expressar como vemos a agressividade por detrás deste paternalismo velado dos criadores da série, que diz querer contribuir para a imagem positiva da nossa Vila de Rabo de Peixe.
O mito urbano que dá o mote à série – o de que a cocaína do iate Sun Kiss 47 do italiano veio dar essencialmente à costa de Rabo de Peixe, como se todo o impacto social só tivesse ocorrido na localidade socialmente mais vulnerável da ilha – vem consolidar o imaginário colectivo sobre uma comunidade historicamente bloqueada. Sejamos claros: não foi só em Rabo de Peixe que se deu o fenómeno, mas um pouco por toda a costa norte da ilha. Esta simplificação da história da ‘coca do italiano’ não é nova, surgiu no El Pais, em 2017. Se à data a comunidade tinha recebido esta narrativa com desconforto generalizado, a materialização deste mito numa série de streaming intensifica o mal-estar para uma nova dimensão: opressão, uma injustiça contra um grupo social vulnerável.
A melhor forma de transmitir como sentimos este mito é imaginar que a actual circunstância social das drogas sintéticas, transversal a toda ilha de São Miguel, fosse reduzida a um lugar, algo como “a sintética de Rabo de Peixe”. O El Pais e agora os criadores desta série parecem escamotear o impacto generalizado da ‘coca do italiano’ na ilha de São Miguel como se ela tivesse acontecido apenas em Rabo de Peixe.
“É preciso ressaltar que mulheres e homens negros não são as únicas vítimas de opressão estrutural: muitos outros grupos sociais oprimidos compartilham experiências de discriminação em alguma medida comparáveis” (Djamila Ribeiro, 2019)
Os criadores, quando colocados em debate, escudam o projecto como obra de ficção, como se essa expressão artística fosse um território sagrado isento de responsabilidade colectiva. Esta visão que trata a arte como uma “Zona Estética Protegida” (ZEP): é datada e destoa do trabalho realizado por alguns dos agentes culturais e criativos, em conjunto com várias forças vivas dos Açores, para que a cultura seja um meio para tratar as feridas abertas. Diria que, onde os principais envolvidos vêem ficção, eu vejo um modelo de negócio de uma empresa de dimensão global. Mesmo que a primeira estivesse protegida por uma ideia narcisista da liberdade autoral, a segunda é social e politicamente muito criticável.
A apropriação cultural que é deliberadamente feita pela série coloca a nu o olhar centralista do audiovisual português. A imagem do pescador rabo-peixense, com a sua pele surrada pelo sol, mãos calejadas das redes de pesca, é substituída pela imagem estereotipada de um jovem educado nos colégios da linha de Cascais, rosto que sempre viveu no privilégio do conforto.
É evidente que essa uniformização do elenco torna o objecto artístico mais palatável e está alinhada com a imagem e linguagem predominante no audiovisual nacional. A inércia social, a falta de diversidade cultural neste sector, colocam constantemente as várias minorias que existem em Portugal à margem, em outras palavras, o interesse na diversidade racial e nas minorias parecem nunca ter estado no centro das preocupações dos criadores de Rabo de Peixe, que não tiveram qualquer cuidado em cunhar o nome da comunidade mais estigmatizada dos Açores como título da série.
Imagine-se o caso hipotético de a Globo, maior produtora de audiovisual da América Latina, em pleno 2023, decidir realizar uma série no Sertão brasileiro e todo o seu elenco serem artistas da zona sul do Rio de Janeiro.
A institucionalização do preconceito fica evidente, ao longo dos sete episódios da série, pela apropriação de estereótipos pejorativos como "rapexim", ganhando maior relevância pelo facto da própria produtora deste projecto, Ukbar Filmes, ter recebido uma subvenção de 1132427,46€ do Fundo de Apoio ao Turismo e Cinema para a produção desta série.
O Estado parece ter-se colocado nesta peculiar posição de apoiar a opressão de um grupo estigmatizado em prol de interesses particulares – a Netflix é uma multinacional com sede em Amesterdão, nos Países Baixos, que não retém os seus rendimentos dos serviços prestados em Portugal.
O financiamento directo do orçamento da República à série da Netflix, por intermédio da Ukbar Filmes, deveria reflectir a necessidade de discutir desigualdades, oportunidades e diversidade na produção deste projecto, indo muito para além da questão local da vila de Rabo de Peixe. Devemos questionar se este modelo será a melhor forma de incentivar e profissionalizar os sectores audiovisuais, culturais e criativos portugueses!
Os não ditos que o nome Rabo de Peixe acarreta são simbólicos. Este projecto da Netflix em nada aprofunda ou contribui para a reflexão das várias questões intrínsecas que a vida dura, instável e de alto risco da actividade piscatória sempre fadou esta população.
Certamente não será o desenvolvimento turístico que esta série trará à vila que colmatará o rebaixamento da auto-estima e discriminação quotidianas desta comunidade, que apesar de tudo, contra ventos e marés, tem marcado a história e o desenvolvimento da maior ilha dos Açores.
Talvez o que importe seja que a espuma desta forte rebentação esteja a passar, abrindo espaço para que os barcos de boca-aberta e as traineiras regressem ao mar, e com eles a vila à normalidade da labuta destas terras do mar.