A roupa que não queremos

As roupas que a H&M nos pede para entregar na loja, com direito a um desconto para, surpresa, comprarmos mais roupa, afinal não estão a ser recicladas.

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Ana Fernandez/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

Há dias rebentou uma bomba num país que se orgulha em não participar em conflitos há mais de 200 anos: as roupas que a H&M nos pede para entregar na loja, com direito a um desconto para, surpresa, comprarmos mais roupa, afinal não estão a ser recicladas. Choque?

A reportagem vem da Suécia porque o Aftonbladet, um jornal local, depois de publicar um artigo sobre as emissões de dióxido de carbono das fábricas que produzem para a H&M no Bangladesh, recebeu uma denúncia anónima sobre o programa de recolha de roupa e reciclagem da H&M, alertando para as falhas no processo. O que fizeram? Entregaram dez peças de roupa nas caixas disponíveis para o efeito, em lojas da H&M em Estocolmo, estas deram uma volta e meia ao globo e foram parar a cemitérios de roupa, como lhes chama o Aftonbladet, ou seja, aterros a céu aberto, um desastre ambiental do qual já ouvimos falar, em países muito pobres, sobretudo no continente africano mas também – e este nome talvez vos seja familiar – no deserto do Atacama.

Tendências (pouco) circulares

Comecemos por aquilo que realmente importa: eu sempre gostei da marca de roupa sueca H&M e sempre comprei roupa desta, mesmo sabendo que faz parte do problema e muito pouco parte da solução. Tal torna este texto ainda mais importante, confirmando as suspeitas que sempre tive de que a política de sustentabilidade da marca é uma espécie de algodão doce: rosa ou branco, cheio de açúcar, pronto a derreter.

Um jornal sueco fez uma investigação sobre o programa de reciclagem da marca e descobriu que pouco (ou nada se) recicla. Juntei os pontos, procurei mais informação. Surpreende-me ter sido um jornal sueco e não uma organização dedicada à sustentabilidade a trabalhar o tema, um sopro de jornalismo num marasmo jornalístico sem fim. Creio ser muito importante estarmos informados do que vamos, realmente, comprar. No caso, é "gato por lebre", pois estamos a comprar o mesmo que a tantas outras marcas: a ideia de que a marca é diferente. É apenas uma ideia e tem um nome: marketing ou melhor, greenwashing.

O Aftonbladet fez uma investigação sobre o programa de reciclagem da H&M e descobriu factos chocantes. A promessa da marca é simples: se não usamos, reciclamos. E propõe-se a ajudar no processo, com um programa de recolha de têxteis que começou em 2013: caixas de recolha de roupa para reciclagem em todas as suas lojas. Iniciativa bonita mas enganadora, ao que o Aftonbladed conseguiu apurar.

O programa permite depositar na caixa de recolha peças de qualquer marca e em qualquer estado de conservação, para recebermos um cupão que pode ser usado na próxima compra. É tal e qual o que fazem outras grandes cadeias que nos dão descontos que acumulamos em cartão, para depois podermos usar, gastando na origem desse mesmo cartão. A ironia da economia circular em que não circulam produtos mas sim o capital. Explica a H&M que o conteúdo das caixas é gerido por parceiros, para reutilizar, reusar ou seja, transformar noutros produtos, e reciclar, convertendo as roupas e têxteis em fibras para produzir outros materiais. Até aqui, tudo bem. Será mesmo assim? Não.

A meta do Acordo de Paris está em cima da mesa e a Suécia quer ser a primeira nação com um saldo energético positivo. Contudo, a organização ambiental sueca, STICA, que está a monitorizar a situação, indica que estamos longe de lá chegar. A H&M é responsável por boa parte das emissões de carbono dos produtores têxteis suecos: 90% dessas emissões, para ser mais precisa. O que é muito. Boa parte deve-se, afirma a marca, às recentes tendências de moda. O oversized, que produz pecas de roupa maiores e mais largas, obriga a utilizar mais tecido e por consequência, aumentam as emissões de carbono. Mas então, não são as marcas a determinar as tendências?

Um ciclo nada circular

O Aftonbladet mostra que afinal não se recicla e a H&M não esteve disponível para explicar, o que me leva a pensar na velha máxima que diz que, "onde há fumo, há fogo". Num e-mail, a marca admitiu ao jornal que há desafios a serem enfrentados. É uma resposta politicamente correcta e tipicamente sueca, sem responder à pergunta ou tocar na questão fundamental, acrescentando que tal vai contra o objectivo da marca de contribuir para a circularidade da indústria da moda. Está bem. Ficamos por aqui sem o contraditório que é devido ao jornalismo porque não quiseram uma entrevista, ou responder a mais questões dos jornalistas.

A H&M não estará, à partida, a lucrar com este programa. Contudo, o negócio do comércio de roupa em segunda mão é já uma indústria global de muitos milhões. Em 2019, um relatório sobre os países escandinavos indicava que se sabia muito pouco sobre o negócio da roupa em segunda mão e eu, olhando para a oferta nas lojas — e em Estocolmo há mesmo muitas lojas de roupa em segunda mão —, não consigo deixar de me perguntar de onde vem tanta roupa e em tão boas condições.

Uma investigação governamental de 2020 avisa para o perigo das roupas acabarem em aterros ou serem queimadas. Prevaricadores há em todo o lado, a diferença é que na Escandinávia, pelo menos na Suécia, que conheço melhor, há uma coisa chamada escrutínio e outra chamada responsabilização. Imediatamente a seguir à publicação da reportagem, vários partidos exigiram mudanças na lei, para apertar os requisitos de protecção ambiental na indústria da moda. A bizarria do excesso de produção tem de ser limitado, assim como o modelo de negócio insustentável. Como alguns políticos, também eu suspeitava de algo assim há muito tempo.

Afirma a H&M que este negócio da roupa está dependente de intermediários que dominam o negócio: as peças de roupa que podem ser usadas novamente são vendidas, garante a empresa. O problema é a quem e como. A H&M fica bem na fotografia e lava as mãos como Pilatos. Faz a sua parte e não se responsabiliza por aquilo que acontece às roupas que são tratadas (ou comercializadas) pelos seus parceiros.

O Aftonbladet decidiu perceber o que acontece a estas roupas. As peças que depositou nas caixas da H&M estavam devidamente identificadas com air-tags, uma tecnologia bluetooth que permite mapear a localização. A roupa que o Aftonbladet deixou nas caixas viajou pela Suécia e chegou à Alemanha. Contudo, nenhuma foi ter ao parceiro que a H&M indica ser responsável pelo processo, e boa parte das premissas do programa caem por terra. Roupa que nunca tinha sido usada é transformada e outras não vão para venda.

Uma das peças viajou até África e a equipa do Aftonbladet foi atrás dela. Encontraram-na num dos vários — e enormes — mercados de roupa em segunda mão que existem em África, onde uma grande diversidade de marcas europeias, sobretudo fast fashion, é comercializada.

O modelo de negócio é simples: os intermediários vendem embalagens de roupa sem que o comprador possa avaliar o que lá está dentro. Comprariam? É uma roleta russa que pode correr muito bem, ou muito mal, dependendo da sorte e do dia. O que encontram tanto pode estar em bom ou péssimo estado e ser mais — ou menos! — adequado para o clima africano. Creio que botas de neve não terão muita utilidade neste clima quente, como o Aftonbladet encontrou, verificando igualmente que, no final do dia, o que não se vende, o que não presta ou o que não se adequa é despejado e queimado numa área junto ao mercado.

No Gana tal é já uma catástrofe social e ambiental porque há cada vez menos peixe e mais têxteis no mar, limitando a sobrevivência dos pescadores. No Benim, onde esteve o Aftonbladet, a situação não é melhor. São as sobras de um consumismo que engole os países mais pobres e ameaça os mais ricos sem que disso estes se consigam aperceber.

As alterações climáticas e os fenómenos climatéricos extremos são resultado de uma combinação de múltiplos factores para os quais este consumo excessivo e descarte de têxteis também contribuem. Pensem nisso.

Essa roupa (já) não é a minha praia

Longe da vista, longe do coração é a máxima que deve aplicar-se à relação com a roupa que descartamos. Depois de mais de uma volta e meia à volta do mundo, um dos casacos depositados em Estocolmo finalmente apareceu. Os jornalistas concluem que parte das peças acabou em países em vias de desenvolvimento, outras foram para venda em segunda mão na Roménia e outras transformadas em fibras têxteis na Polónia e Alemanha. Há também referências à sua transformação na Índia.

A equipa do Aftonbladet visitou a área circundante à do primeiro mercado e encontrou uma praia de... roupas. Basicamente, ao longo do tempo foram sendo descartados têxteis nesta zona que hoje é um monte de roupa coberto por uma fina camada de areia, em ligação directa à água. Escusado será dizer que as roupas amontoadas vão-se desfazendo e mergulhando na água, num processo de decomposição que faz com que os tecidos se misturem com as marés e as correntes, acabando por se degradar e decompor.

Os jornalistas continuaram a sua viagem e visitaram um outro mercado onde encontraram mais do mesmo e confirmaram, junto dos comerciantes, que aquilo que é enviado da Europa tem cada vez pior qualidade, sendo a H&M a marca mais comum entre o que recebem. Trocado por miúdos ou, no caso, por microplásticos, a H&M até pode querer desenvolver uma operação circular mas este programa de “fechar o ciclo” é mais um contributo para deteriorar o já fraco equilíbrio de um ecossistema ameaçado de todas as formas. Incluindo esta, através da roupa que (já) não queremos.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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