À noite, todos os gatos são pardos

A alternativa que o ME nos proporciona é a do bloqueio a toda a informação que nos permita avaliar se progredimos ou regredimos no processo de qualificação das aprendizagens.

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Não fora a oposição de alguns membros do Governo, estaríamos agora a usufruir da última edição da divulgação dos resultados dos alunos portugueses na avaliação externa – vulgo exames – do ensino secundário. Desde muito cedo se percebeu a intenção da atual equipa governativa do Ministério da Educação (ME): acabar com todas as provas de final de ciclo e dos exames do ensino secundário. Ou seja, reduzir às provas de aferição o único instrumento de avaliação externa das aprendizagens, com a grande vantagem de mais facilmente se condicionar o acesso às classificações obtidas pelos alunos e pelas escolas.

De forma obsessiva, expressou-se por mais de uma vez a oposição aos rankings que anualmente os meios de comunicação social tratavam e publicavam. Invocavam o facto de essas ordenações dos resultados escolares não traduzirem de forma adequada a qualidade do ensino e da aprendizagem. Por vezes aduzia-se o argumento de que esses rankings apenas favoreciam as escolas privadas em detrimento da escola pública e que através do seu acesso por parte do grande público representavam um fator de desigualdade social num sistema que deveria promover a equidade e tendencialmente a igualdade.

Reconheçamos que a mera ordenação dos resultados é uma abordagem sujeita a escrutínio e as leituras que se fazem dessas listas raramente primam pelo rigor e por critérios equilibrados. Porém, a alternativa que o ME nos proporciona é a do bloqueio a toda a informação que nos permita avaliar se progredimos ou regredimos no processo de qualificação das aprendizagens. Se o cenário era dominado pelo ruído, passamos a ficar submersos pelo silêncio.

O problema que incomoda o ME não é propriamente o das classificações quantificadas dos resultados, mas antes a possibilidade de esses dados permitirem uma análise comparada no tempo e na diversidade espacial, organizacional e social do sistema de ensino. Progredimos ou regredimos nas aprendizagens fundamentais? Não sabemos, porque se torna impossível saber. Os últimos anos de reforma curricular, de pandemia e de instabilidade no sistema de ensino, que efeitos tiveram no défice de aprendizagem? E a tão apregoada recuperação, que resultados teve? Nunca o saberemos. E as desigualdades educativas acentuaram-se ou atenuaram-se? O sistema de ensino na atualidade é um criador de oportunidades de mobilidade social ascendente ou um mero reprodutor e amplificador dessas desigualdades?

Não sabemos! O ME lançou sobre a instituição escolar o silêncio e a escuridão de forma a criar a ilusão de que somos todos iguais porque à noite todos os gatos são pardos.

Não fora a publicação dos resultados escolares, jamais se revelaria o verdadeiro mercado da nota que resiste em várias escolas privadas, mas também em algumas públicas. Esse é um escândalo que continua por esclarecer e resolver.

Entretanto, o que mais me impressiona é a forma como o ME lança para o lixo um instrumento tão decisivo na regulação do sistema. Comparo-o ao médico que dispensa todos os meios de diagnóstico e lança pela janela fora o termómetro e o estetoscópio. Depois olha para o doente e orienta-se pelo seu bom ou mau aspecto para identificar a doença e formular a terapia... a olho!

Por último, tomemos o argumento da estigmatização da escola pública. Entendo que é um falso argumento dado que a grande diferença está entre boas escolas e más escolas e nesses dois grupos há escolas públicas e privadas. Não se pode continuar com a tese de que a escola pública é boa pela natureza do seu estatuto e que as escolas privadas só são boas pelos resultados escolares expressos em classificações de exame. Trata-se de um argumento marcadamente ideológico que em nada corresponde à realidade, mas para o provarmos necessitaríamos de ter os tais resultados escolares que permitissem avaliar os trajetos dos alunos ao longo da escolaridade, confrontá-los com a sua origem social e os contextos de aprendizagem.

A informação disponibilizada pelo ME, sendo cada vez mais escassa, é igualmente mais difícil de comparar, uma vez que todos os anos os critérios se alteram. Daí que corramos o risco cada vez maior de os tais rankings se tornarem pouco credíveis, ainda que, a cada ano, pouco ou nada de novo se possa revelar em comparação com o que já sabíamos. Neste aspecto, o ME está a conseguir concretizar o seu objetivo: os gatos estão a ficar cada vez mais pardos, ainda que mais famélicos e esqueléticos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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