Amílcar Cabral, eu e a Finlândia

Mikko Pyhälä visitou as zonas libertadas da Guiné-Bissau em 1970 com um gravador, uma câmara fotográfica e outra de filmar. Os registos dessa aventura disseminaram a luta do PAIGC na Finlândia.

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Delegação da UIE atravessando a fronteira entre a República da Guiné e a Guiné-Bissau em direcção à primeira base nas regiões libertadas onde iriam pernoitar. Da esquerda para a direita, entre os estudantes da UIE, Adelino Nunes Correia, Krzystof Opalski, José Rodríguez e Mikko Pyhälä Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso
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A minha relação com Amílcar Cabral data de dezembro de 1970. Como membro da delegação da União Internacional dos Estudantes (UIE), tive então o imenso prazer de visitar as zonas libertadas, a convite do Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC). Foi uma das primeiras visitas àquelas zonas realizada por uma delegação estrangeira da sociedade civil. Fomos guiados por Adelino Nunes Correia, membro do PAIGC e do secretariado da UIE. Os meus companheiros de viagem foram Krzystof Opalski, da Polónia, e José Rodríguez, da Venezuela. Integrei a missão na qualidade de secretário académico da União Nacional dos Estudantes da Finlândia.

Era a primeira vez que a UIE, com sede em Praga (então Checoslováquia), enviava uma delegação para testemunhar uma guerra de libertação nacional. Escolheu-se a Guiné-Bissau porque aí a luta estava mais avançada do que nas outras colónias e porque Adelino Nunes Correia se encontrava em Praga. Uma vez em Conacri, tivemos reuniões com Amílcar Cabral, Ana Maria Cabral, Aristides Pereira, João Cruz Pinto, Lilica Boal e outras pessoas. Percorremos as áreas libertadas de Cubucaré e de Quitáfine, com José Araújo, e pernoitámos no acampamento do comandante Bernardo “Nino” Vieira, perto do aquartelamento português de Guiledje.

Dentro da Guiné chamada Portuguesa – onde, segundo os jornalistas dos jornais europeus mais conservadores, não existiam quaisquer zonas libertadas – conhecemos Carmen Pereira, Umaro Djaló, Carlos Correia, Fidelis Cabral d’Almeida, Osvaldo Vieira, Bobo Keita, Rosalino da Silva, Alfredo Barbosa e Paulo Barbosa, entre outras pessoas. A visita às zonas libertadas da Guiné-Bissau teve em mim um grande impacto. Pude observar diretamente a filosofia do PAIGC e a forma como Amílcar Cabral e seus camaradas estavam a organizar a vida do povo. Efetivamente, em dezembro de 1970, Cabral confidenciou-me que um novo Estado estava para nascer nas zonas libertadas.

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Carmen Pereira (comissária política para a região de Cubisseco) e José Araújo, dirigentes do PAIGC Mikko Pyhälä/Casa comum/Fundação Mário Soares e Maria barroso

A visita transformou-me e fez-me um lutador pelos direitos dos povos oprimidos. Podem imaginar a minha alegria quando se proclamou o Estado da Guiné-Bissau, em Madina do Boé, ainda durante a guerra, a 24 de setembro de 1973 – o mesmo dia do meu aniversário! Foi também no mesmo dia, mas em 1974, que organizámos, em Praga, uma festa com estudantes da Guiné-Bissau, como Nharebat Nancaia, Seko Intchaso, Tumane Ture, Nhama Da Costa, Pio Correia e muitos mais. Eles estavam na cidade para estudar. Eu estava no meu primeiro posto diplomático.

A divulgação das conquistas do PAIGC

Em 1971, quando regressei à Finlândia, depois da visita às zonas libertadas da Guiné-Bissau, a nossa delegação preparou um relatório bastante completo sobre a viagem realizada. Foi publicado pela UIE. Eu mesmo escrevi artigos sobre a nossa visita que foram publicados em vários jornais da Finlândia e até no exterior, em publicações estudantis. Também dei várias entrevistas a programas de rádio e televisão. Cheguei a mandar um relatório ao Presidente da República e informações ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Finlândia. Na altura, o ministério ainda tinha uma posição reservada sobre a questão.

O Comité de Solidariedade com África, que já existia sob o auspício da organização dos Defensores da Paz na Finlândia, editou um boletim com notícias sobre as lutas de libertação. Muito também foi publicado numa revista chamada Tricont, com enfoque no chamado Terceiro Mundo. A União Nacional dos Estudantes da Finlândia chegou a entregar donativos ao PAIGC e a União Nacional de Alunos da Escola Básica chegou a organizar uma grande campanha, em que as escolas deram o dia livre a todos os alunos que quisessem trabalhar por um dia a troco de salários pagos por pessoas ou empresas patrocinadoras da iniciativa, sendo que esses salários revertiam para o PAIGC, na forma de donativos, como apoio humanitário. Anteriormente, tinha havido uma idêntica campanha a favor da Frelimo, de Moçambique. E a Igreja Luterana da Finlândia também começou a canalizar fundos para o mesmo fim.

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Soldados do PAIGC nas regiões libertadas da Guiné-Bissau Mikko Pyhälä/Casa comum/Fundação Mário Soares e Maria barroso

Por causa da minha atividade frenética a favor do PAIGC, os meus amigos começaram a dizer, em jeito de brincadeira, que a Guiné-Bissau se transformara no país africano mais conhecido na Finlândia. Os partidos políticos de esquerda, as organizações sindicais e as organizações estudantis começaram a insistir que a Finlândia deveria ajudar humanitariamente os movimentos de libertação africanos e que deveria elevar o seu perfil na ONU relativamente à descolonização.

Por outro lado, alguns círculos empresariais tentaram evitar tensões políticas entre a Finlândia e Portugal, entendendo este último como um mercado disponível para os produtos finlandeses. O então embaixador da Finlândia em Lisboa, nos seus relatórios, assumia uma posição muito próxima da do Governo de Portugal. Alguns chefes no ministério estavam firmemente contra o apoio humanitário aos movimentos da libertação, vendo esse apoio como comprometedor para a política externa da Finlândia, assente na neutralidade relativamente aos grandes blocos.

Amílcar Cabral visita a Finlândia

Foi o Comité de Solidariedade com África que teve a ideia de convidar Amílcar Cabral a visitar a Finlândia. Os contactos iniciais foram feitos por mim junto do cabo-verdiano Onésimo Silveira, que era ao tempo representante do PAIGC em Estocolmo, na Suécia. Na Finlândia, as nossas forças políticas acabaram por ser recetivas à ideia. Em 1971, uma comissão dos principais partidos (de esquerda, ao centro e à direita), encabeçada pelo secretário-geral do Partido Social-democrata, Kalevi Sorsa, convidou Amílcar Cabral para uma visita que se concretizou em outubro desse mesmo ano.

Na comissão participaram também a União Nacional de Estudantes, a Sociedade para a ONU e os Defensores da Paz. O secretariado da comissão era constituído pelo social-democrata Paavo Lipponen, pelo liberal Jarmo Mäkelä e por mim próprio. O programa da vista foi organizado como se da visita de um estadista se tratasse. Por exemplo, quando visitou uma escola secundária, Cabral foi acompanhado pelo ministro da Educação. E Urho Kekkonen, Presidente da Finlândia, recebeu Cabral oficialmente; era a primeira vez que um Chefe de Estado de um país ocidental capitalista recebia um líder de um movimento de libertação africano. Se não me engano, foi também a única vez que tal sucedeu.

Eu estive presente na reunião, durante a qual Cabral elogiou o Presidente Kekkonen, pela sua política de paz e por mitigar as tensões entre os Estados Unidos da América e a União Soviética. E convidou Kekkonen a visitar a Guiné-Bissau. Kekkonen respondeu: “Uma visita agora mesmo seria, sem dúvida, muito interessante, mas eu acho que no futuro encontrarei um povo mais feliz.”

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Jovem com um instrumento de cordas, numa tabanca no interior da Guiné-Bissau Mikko Pyhälä/Casa comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso
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Mulher cuida do cabelo da outra numa tabanca nas regiões libertadas Mikko Pyhälä/ CASA COMUM/FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES E MARIA BARROSO

Na Finlândia, Cabral desdobrou-se ainda em encontros com os líderes de todos os partidos políticos representados no parlamento e pouco depois todos esses partidos políticos escreveram uma carta ao Governo, insistindo que a Finlândia deveria começar a financiar as obras sociais dos movimentos da libertação, como já tinham começado a fazer a Suécia e a Noruega. E assim foi.

Depois da visita de Cabral, quase nenhum grupo político ou comentador se mostrou contra o apoio aos movimentos da libertação. Esta situação veio contrastar com o que ocorria nos países membros da NATO, como por exemplo a Noruega, os Países Baixos e o Reino Unido, onde as guerras coloniais de Portugal tiveram publicidade positiva. O apoio do Governo da Finlândia aos movimentos de libertação resumiu-se ao financiamento da produção de livros escolares e de projetos de saúde, assim como a outros apoios na área sanitária. Depois da independência, contudo, a Finlândia apoiou e desenvolveu projetos de maior dimensão tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde.

Importa ainda referir que a visita de Cabral à Finlândia teve eco internacional. Por exemplo, da mesma foi feita uma cobertura ilustrada e muito substancial em francês. A revista AfriqueAsie, publicada em Paris, reproduziu a conferência que Amílcar Cabral proferiu em Helsínquia.

Hora de Despedida de Branco-Le

Cabral teve ainda o génio do reconhecer a importância da cultura na luta de libertação nacional. Uma expressão muito bonita deste trabalho cultural foi-nos dada a observar na Finlândia em agosto de 1973, quando nos visitou um grupo cultural do PAIGC, de 72 pessoas, sob a liderança artística de Lucette Cabral e Francisca Pereira, com o guitarrista cabo-verdiano Valdemar Lopes. Durante a visita foram apresentadas peças musicais e de teatro patriótico, assim como música e danças folclóricas.

Ainda relativamente a este assunto, é preciso acrescentar que eu próprio gravei as músicas, quando visitei as zonas libertadas. Em 1971 foi produzido na Finlândia o disco Hora de Despedida de Branco-Le, com gravações minhas e outras que tinha feito com Amélia Araújo para a rádio do PAIGC. Foi o primeiro disco na história da música da Guiné-Bissau. Uma das canções patrióticas, Guerra Mendes, foi escrita por Abílio Duarte.

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Carregadores transportando a colheita de arroz nas regiões libertadas Mikko Pyhälä/ CASA COMUM/FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES E MARIA BARROSO

Gostaria ainda de mencionar que fizemos cópias deste disco de música folclórica e de canções patrióticas da Guiné-Bissau, sob camuflagem de um disco de música popular finlandesa, e que as fizemos chegar à senhora Eugénia Pereira de Moura, para distribuição dos discos na clandestinidade em Portugal. A senhora Eugénia foi uma activista social de vanguarda em Portugal, no campo da planificação familiar e da defesa dos presos políticos. Visitou a Finlândia para uma reunião ecuménica e procurou-me, ao ter conhecimento da minha relação com o PAIGC. Na altura, a revista Tricont publicou, acrescente-se, uma extensa entrevista com o seu marido, o professor Francisco Pereira de Moura – naturalmente recorrendo a um pseudónimo – sobre como as empresas monopolistas portuguesas apoiaram as guerras coloniais. Pereira de Moura seria ministro em três governos provisórios portugueses depois da revolução do 25 de Abril de 1974.

Cabral, uma figura singular

O social-democrata finlandês Kalevi Sorsa, que convidou Cabral para visitar a Finlândia, chegou a ser ministro dos Negócios Estrangeiros e depois primeiro-ministro na Finlândia. Um outro social-democrata que também conheceu Cabral, Paavo Lipponen, chegou a ser primeiro-ministro e nas suas memórias descreve Cabral como um importante intelectual. A deputada social-democrata sueca Birgitta Dahl visitou as zonas libertadas da Guiné-Bissau pouco antes de mim e chegou a ser ministra e presidente do Parlamento. Escreveu um livro sobre a sua visita à Guiné-Bissau, tal como o fez o jornalista norueguês Johan Thorudd.

Depois do assassinato de Cabral, o sociólogo finlandês Juhani Koponen escreveu que Cabral foi o mais brilhante pensador da jovem África e que o seu assassinato nos privava dos contributos que ele poderia dar para a construção da nação em situação de paz. Por sua vez, o escritor sueco Per Wästberg escreveu que Cabral foi o líder mais brilhante que as lutas da independência africanas produziram e que a sua perda era irreparável.

Cabral deixou uma importante herança teórica e uma prática revolucionária, sobretudo nos domínios da cultura e da economia. Ninguém teve o seu carisma, força de análise e clareza na hora de promover a integração social e a solidariedade.


Nota biográfica: Mikko Pyhälä foi secretário académico da União Nacional dos Estudantes da Finlândia. Entre 1972 e 2013 trabalhou no Ministério dos Negócios Estrangeiros da Finlândia. Foi embaixador em diferentes países, nomeadamente na região do Caribe e na América do Sul. Publicou estudos sobre conflitos no Vietname, Afeganistão ou Venezuela. Trabalhou no programa ambiental da ONU.

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