No Gharb, vai-se do Médio Oriente ao Porto em 50 metros quadrados e duas esplanadas
Entre kebabs, açordas e gaspachos, o restaurante do Campo dos Mártires da Pátria quer mostrar “o que nós somos” — com amigos pelo meio.
Está sol, o vento deu tréguas e a pequena esplanada, amorosamente encaixada entre o Campo Mártires da Pátria e a Rua de Trás, vai enchendo ao ritmo do lusco-fusco. Escutam-se várias línguas, ou não estivéssemos no Porto de 2023, mas também uns quantos impropérios locais, a comprovar que ainda há Porto em 2023. Na mesa ao lado estuda-se o menu em português, esmiuçando, antes dos húmus e dos kebabs propriamente ditos, as ilustrações que o acompanham: “Este é o Nelson, olha aqui a Cristina, o Miguel...”
É nesta esquina, entre o local e o global, Porto e Damasco, Portugal e o Médio Oriente, que o Gharb se encontra. Daí o design da ementa, da autoria de Alejandra Jaña, incluir simpáticos bonequinhos que representam algumas “figuras” da cidade (quem encontra o Becas?) que, por sua vez, figuram também na vida de Gustavo Guimarães, um dos proprietários. “Uma homenagem aos amigos”, às raízes, ao que nos faz ser nós — uma filosofia que está um pouco por todo o lado aqui. Ora vejamos.
De portas (oficialmente) abertas há pouco mais de um mês, o Gharb (sim, como Algarve) quer honrar o legado árabe presente no ADN português — o nome, em árabe, significa Ocidente, “que é o que nós somos” vistos de lá, o “ponto final, não a origem”, explica o arquitecto portuense, chegado a este projecto pela mão do cliente, agora sócio e amigo, André Mesquita. E basta olhar para a génese da açorda, por exemplo, para se concluir que essa influência se estende à gastronomia.
A carta, interpretada pelo chef Tiago Curi, brasileiro de origem libanesa, traça essa viagem: há gaspacho andaluz (4 euros), açorda de bacalhau (13 euros), kebab de borrego (7 euros), várias sobremesas com pistácio. Há panquecas marroquinas (beghrir) para começar o dia, ovos turcos (çilbir) para qualquer hora e bastantes opções para comer à mão (seja húmus, baba ganoush ou menemen), sempre com muito pão sírio.
E que pão: é feito por cá, à mão, com um pequeno segredo (“não é vegano, é vegetariano”, espicaça Gustavo). Uma ementa curta, feita para partilhar, completada com refrescos (como ayran), cerveja ou vinhos naturais (“uma opção”, para contrariar a tendência para a industrialização) e, em breve, cocktails também “ligados à grelha e ao fogo”.
Tudo começou num diner americano
Gustavo e André conheceram-se em 2018, quando o segundo contratou o primeiro para recuperar o prédio que encabeça o pequeno estabelecimento de 50 metros quadrados. Tal como o vizinho Miss’Opo, que Gustavo co-criou e desenhou, também aqui há unidades de alojamento local (oito estúdios, sendo que o “melhor” se transformou numa cozinha de produção) a desaguar para um restaurante.
André não é novo nestas andanças. Fundou dois hostels em Lisboa (o Home e o Yes!) e é um dos nomes por detrás do Nicolau e, consequentemente, do Amélia (que também vai abrir em breve na Foz). A ideia para este projecto passa por um “conceito integrado”, uma “espécie de hotel de charme” para “viver a experiência Gharb Porto”. Ou seja, o hóspede chega à recepção/bar e, antes de subir, pode logo beber um copo na esplanada da frente com vista para a Torre dos Clérigos ou “picar” qualquer coisa cá atrás, ao balcão ou recolhido no exterior, numa onda “mais backstreet”. Está assim numa “minibolha” em que tudo é a continuação de uma outra coisa.
A princípio, aliás, a ideia até era abrir apenas a esplanada mais escondida (“somos menos de maximização de turismo”), quiçá mais romântica, local ou very typical. Curioso pensar em tudo isto num espaço que até estava para ser um diner americano. A dupla chegou inclusive a ir aos EUA, a Chicago, para trazer inspiração, mas os planos mudaram — e Gustavo passou de arquitecto a sócio, com umas digressões gastronómicas na Turquia pelo meio.
“Começou a haver este sentimento de que seríamos um bocadinho mais árabes do que anglo-saxónicos”, diz. Por outro lado, o Gharb não podia ser puramente um restaurante do Médio Oriente, algo “tão deslocado” numa zona tão turística, daí a viagem pelas raízes árabes da gastronomia ibérica que também se desvia pela arquitectura, com a escolha da terracota e do mosaico hidráulico para o interior. Mas, a pontuar tudo isto, há também uma mensagem política “levezinha”: “É um bocado para falar da miscigenação cultural, do quão rica é, do que é que traz aos povos e mostrar que existe e pode existir, à parte dos discursos de propaganda e das agendas.”