“Eis o primeiro dia da nossa criação como nação”
A relação entre as esquerdas italianas e o PAIGC tomou várias formas e conheceu vários protagonistas. Porém, o acontecimento mais relevante da relação italiana teria lugar no dia 1 de julho de 1970…
“Quando no final do segundo dia de trabalhos fui à mesa da presidência para dizer a Cabral que Paulo VI o receberia numa audiência privada com Marcelino dos Santos e Neto dois dias após a conclusão da conferência, ele disse-me: ‘Eis o primeiro dia da nossa criação como nação.’ O sabor vagamente bíblico da sua frase adquiriu um significado político na sua boca”, recordou Marcella Glisenti.
É um dia quente e luminoso em Roma. É o primeiro dia das férias de Verão para a maioria dos italianos, como enfaticamente anunciam os diários da manhã, falando em “início do êxodo para as praias”. É nesse dia 1 de julho de 1970 que Marcelino dos Santos, Amílcar Cabral e Agostinho Neto encontram o papa Paulo VI na Sala dos Paramentos, após a conclusão da audiência geral. A reunião tem início às 12h15, dura cerca de 20 minutos e decorre na presença de dois prelados, do intérprete vaticano e de um acompanhante italiano, Marcella Glisenti. É precisamente a Glisenti, diretora da Livraria Paesi Nuovi, que se deve a mediação com o Vaticano para conseguir a audiência por ocasião da Conferência de Solidariedade com os povos das colónias portuguesas, realizada na capital de Itália entre 27 e 29 de junho daquele ano. A conferência foi o momento mais importante da longa e articulada história de solidariedade e apoio da esquerda e dos sectores católicos progressistas italianos aos três movimentos africanos de libertação do colonialismo português: MPLA, PAIGC e Frelimo.
Marcella Glisenti, editora, livreira, ativista terceiro-mundista, é quem anuncia a Cabral, em plena conferência, a aceitação por parte do Vaticano do pedido de encontro. O convite do Vaticano chega a 29 de junho, em resposta à carta oficial enviada a 29 de maio pela própria Glisenti, em nome do comité para a organização da conferência de Roma, ao monsenhor Frana, acompanhada por um dossier acerca das atividades dos três movimentos. A chegada tardia do convite terá sido estratégica; tal como viria a ser considerada estratégica a prudência vaticana de afastar o fotógrafo pontifício, no momento do encontro, para sublinhar o caráter rigorosamente privado da audiência.
Tratava-se, sem dúvida, de uma audiência, ainda que sob a forma privada, contrariamente ao que, apressadamente e com evidente embaraço, afirmou a nota do secretário de Estado da Santa Sé a 7 de julho, em resposta aos protestos veiculados numa nota do embaixador de Portugal junto do Vaticano: “[...] Não se tratou de uma audiência no verdadeiro sentido do termo: no âmbito dos encontros de caráter geral que, na qualidade de Pastor universal, Sua Santidade costuma ter [...]. Não foi pronunciada qualquer palavra que pudesse soar ofensa a Portugal, ou menor estima pela sua dignidade, juízo sobre a sua política, interferência nos seus assuntos internos. Por isso, o Santo Padre ficou surpreso e desolado por a Embaixada de Portugal ter enviado uma nota de protesto [...].”
A nota de protesto da embaixada portuguesa ao Vaticano e a chamada imediata do embaixador junto da Santa Sé foram os primeiros sinais públicos de desaprovação da concessão da audiência aos “terroristas”, como recorda nas suas memórias o então ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Patrício, rapidamente informado pelo próprio embaixador Eduardo Brazão da notícia do encontro e da sua imediata ressonância mediática: “Fui logo a casa do Marcello, e decidimos o gesto diplomático grave que é chamar para consultas o nosso embaixador. Significa uma atitude negativa. Chamei o Brasão a Lisboa e, entretanto, saiu a notícia nos jornais. Chamei também o núncio apostólico, que era um homem baixinho e vesgo, e seguiram-se conversas muito duras com ele. Disse-lhe que estávamos profundamente ofendidos com o gesto de Sua Santidade. O núncio respondeu que era um gesto sem sentido político, e que o Papa apenas tinha dado a bênção aos terroristas. Aí, expliquei-lhe que o povo português era muito católico, mas também podia ser anticlerical e contei-lhe a história do ‘Bispo Negro’. Depois disto tudo, a Santa Sé acabou por publicar no L’Osservatore Romano uma nota a dizer que aquilo não tinha sido uma audiência no sentido do termo, que o Papa vira um bando de peregrinos entre os quais estavam aqueles senhores, e deu a bênção a todos. Nós também considerámos o assunto arrumado.”
Os jornalistas na livraria Paesi Nuouvi
A “audiência especial” ter-se-á realizado segundo um esquema simples, mas judiciosamente estudado pelo protocolo vaticano. Paulo VI, regressando da audiência geral, acabado de entrar na Sala dos Paramentos, ter-se-á sentado num pequeno pódio do qual falou aos três líderes (que se terão mantido de pé durante todo o encontro). Dirigindo-se diretamente aos três homens, terá dito: “Conheço bem a situação trágica de algumas regiões de África: a Igreja está do lado dos países que sofrem.”
A gratidão, quase emocionada, por terem sido recebidos pelo Papa dá rapidamente lugar a uma versão política pragmática dos factos, que atinge em cheio o primeiro alvo crítico de toda a operação: o Governo português de Marcello Caetano. Para que o encontro com o Papa produza o efeito esperado, os jornalistas são, apressadamente, convocados a comparecer no dia seguinte na Livraria Paesi Nuovi, de Marcella Glisenti, e convidados a não divulgar a notícia da conferência de imprensa antes da sua realização.
São cinco os pontos centrais que Marcelino dos Santos e Cabral (Neto, entretanto, já tinha partido) tratam com segurança e amplitude de reflexão.
Primeiro: o Papa conhece a situação dos três países em luta e reconhece o papel dos três líderes presentes. Cabral confirma: “Veja, amigo, mesmo que nós tivéssemos chegado lá com a Marcella e tivéssemos ficado calados, o acontecimento histórico seria o mesmo, porque até agora Portugal tem feito a sua propaganda miserável, chamando-nos agentes comunistas, e por aí fora, e tentando esconder a verdade da nossa luta. A nossa luta é o movimento de um povo inteiro que põe fim ao domínio colonial, para atuar de acordo com o que diz a própria Encíclica do Papa, ou seja, que todos os povos têm direito a uma vida de justiça, de liberdade, de paz e de independência. E, de facto, ele reafirmou ontem estas coisas. Teve a gentileza de as repetir. Deu-nos conselhos. Também nos exortou a lutar pela paz com meios políticos. Desta realidade da nossa conversa, queremos destacar apenas duas coisas: primeiro, o facto de os nossos povos terem sido recebidos por ele, segundo, que ele reiterou a posição da Igreja a favor da liberdade, da paz e da independência dos povos” (Conferenza stampa, p. 25 agora in Russo, 2022, p. 166).
Segundo: o encontro tem, sem dúvida, a função de desmascarar as contradições no seio dos católicos, em particular, dos católicos portugueses. Por um lado, muitos católicos portugueses e africanos estão do lado da liberdade dos nossos povos, e nalguns casos pagaram e estão a pagar por isso; por outro, a hierarquia católica portuguesa representada pelo cardeal Cerejeira [designado Sergera na transcrição italiana] manifestara-se sempre a favor da Guerra Colonial, chamando-lhe, à sua maneira, defesa da civilização ocidental: “Admirava-nos muito que se pudesse defender a civilização cristã massacrando populações, queimando as crianças, as mulheres, as aldeias com o napalm. E desejávamos verdadeiramente que fosse feito um gesto que convencesse a opinião pública portuguesa de que não é esta a posição da Igreja Católica Romana. Para nós, o gesto foi feito. Foi feito esse gesto.”
Terceiro: a paz é obstaculizada pela guerra declarada pelo colonialismo português. “Se a nossa luta” — afirma Cabral — “assumiu a forma que assumiu, a culpa é inteiramente do Governo português. Nós lutamos pela paz. Mas não acreditamos que seja possível viver em paz sob o domínio colonial. É a paz dos cemitérios. Não é digna de um povo.”
Quarto: a evangelização e a educação atribuídas às missões católicas dentro do projeto colonial português revelaram-se processos historicamente falidos. “Mas a Igreja portuguesa devia cumprir uma tarefa: por um lado, fazer cristãos. Fez uma percentagem mínima: no meu país, a Guiné, fez 1%”, como recorda Cabral. Marcelino dos Santos: “Infelizmente, vemo-nos forçados a constatar que a Igreja portuguesa em Moçambique se colocou completamente do lado do regime colonialista fascista de Portugal e que faz de tudo para controlar e impedir a alfabetização do nosso país.”
Quinto: a solidariedade internacional com as lutas de libertação deve ser problematizada dentro de uma dimensão não binária, como sugere a lógica da Guerra Fria. O problema da ajuda maciça recebida dos países socialistas, in primis, da URSS e China, que condicionaria a autonomia dos movimentos, é desmontado por Cabral através de uma série de argumentações político-estratégicas: as ajudas, de onde quer que venham, são bem-vindas (países socialistas, países capitalistas — é recordado o caso da Suécia), porque em jogo está a libertação de um povo. Invertendo a lógica, Cabral mostra as incongruências da solidariedade internacional apontando a hipocrisia dos países ocidentais cujos governos, sob o escudo da NATO, vendem armas a Portugal, e cujos órgãos de imprensa se concentram no abastecimento dos movimentos de libertação com material bélico do bloco socialista.
Tal como fizera na sua primeira viagem a Itália, Cabral volta a recordar: “Se Itália nos quer enviar armas, seria uma coisa ótima, tanto mais que as armas italianas que vemos nas mãos dos portugueses são ótimas... E assim o fizessem outros países do Ocidente!”
Um ponto de não retorno
Uma parte da imprensa italiana constrói, logo a partir do dia 2 de julho, a notícia mediática do sucesso do encontro: notícia que é relatada e difundida também por quotidianos estrangeiros como Le Monde e La Croix. A desorientação com que Portugal reage à notícia revela as implicações que esta teve no plano diplomático, político, religioso e até no âmbito, digamos, da estratégia comunicativa, como testemunha o facto que põe fim às polémicas surgidas em Portugal acerca da suposta solidariedade do Papa com os “terroristas infiltrados no Vaticano” (nas palavras de Marcello Caetano): a intervenção na rádio e na televisão do próprio Marcello, a 7 de julho de 1970.
Naquela ocasião, Caetano acolhe a versão da nota vaticana — que adotava um tom conciliador visando evitar ruturas diplomáticas com o Governo português —, para explicar à nação que tudo se resumia a um “ardil” já “desmascarado”. “Louvado Deus que tudo se reduziu a exageros de interpretação publicitária. O Papa não abençoou, nem podia abençoar os terroristas como tais. Não podia acolher e louvar aqueles que há tantos anos espalham a dor, o luto e as ruínas em territórios portugueses. Não podia sancionar a rebeldia à mão armada contra o Governo legitimamente constituído, que mantém com a Santa Sé relações amistosas [...].”
O episódio, com todas as suas consequências políticas, diplomáticas e, inclusivamente, simbólicas, tem múltiplas chaves interpretativas: vale a pena recordar que também as pressões de alguns sectores da Igreja italiana, bem como dos católicos progressistas, podem ter contribuído para a realização da audiência; audiência que o Vaticano muito provavelmente não imaginou que se pudesse tornar um “facto histórico”, como, efetivamente, veio a ser considerada pelos movimentos de libertação africanos. Resta uma consideração: se a Guerra Colonial foi também uma guerra psicológica, Roma significou para a causa anticolonialismo, não somente africana, mas internacional, uma vitória muito além da dimensão política, diplomática e religiosa. Foi uma vitória moral na luta da verdade contra a mentira, como diria Amílcar Cabral.
Era um ponto de não retorno. Tanto para o colonialismo português como para a luta de libertação africana. Quem tivesse sabido ler os sinais teria entrevisto nos eventos daquele verão romano “brilhantes novos começos” — para os guerrilheiros — e inevitáveis epílogos — para o colonialismo português. Amílcar Cabral: “A conferência de Roma e a audiência com o Papa Paulo VI marcaram uma etapa nova na nossa luta no plano internacional, a qual provocou no inimigo colonialista uma desorientação que ele não soube ou não pôde esconder.”
Ler mais:
Vincenzo Russo, A Resistência Continua. O Colonialismo Português, as Lutas de Libertação e os Intelectuais Italianos, prefácio de José Luís Cabaço, Porto, Afrontamento, 2022.
Amílcar Cabral, Obras Escolhidas. Unidade e Luta. A Prática Revolucionária, textos coordenados por Mário de Andrade, Fundação Amílcar Cabral, 2013.
Marcelo Caetano, Um Ardil Desmascarado, Secretaria de Estado da Informação e Turismo, Lisboa, 1970.
Vincenzo Russo é professor de Literatura Portuguesa e Brasileira e Literaturas Africanas na Universidade de Milão. É tradutor de autores portugueses como Fernando Pessoa, Eça de Queirós e Eduardo Lourenço e autor de A Resistência Continua. O Colonialismo Português, as Lutas de Libertação e os Intelectuais Italianos (Afrontamento, 2022) e com R. Vecchi de A Literatura Portuguesa. Modos de Ler (Glaciar, 2022).