Corri. Corri como nunca. Embora nada soubesse sobre o assunto, o instinto fez-me sentir medo e avancei pelo caminho de terra batida.
Depois de acompanhar os meus avós ao campo de cultivo regressei a casa. Vou como capuchinho vermelho, repousada nos pensamentos de criança. E eis que, junto a um casario, um velho da povoação me chama, insistindo. Para quê? E foi este o medo que me protegeu. Ao redor, campos de cultivo e árvores. Eu nada sabia sobre abuso sexual infantil. Mais tarde, soube que recaía sobre ele a fama de abusador.
Fala-se pouco da desgraça que aconteceu a tantos, infelizmente. Mais tarde, éramos um grupo de raparigas, fomos desafiadas a sair da escola por um homem, junto ao gradeamento. Afastámo-nos e foi a nossa sorte. O poder de dizer "não" é o que muitos inocentes não sabem, porque o poder detém-no outra pessoa, o abusador.
Todos os anos, pelo menos, 55 milhões de crianças na Europa sofrem alguma forma de violência física, sexual, emocional ou psicológica, diz-nos a OMS.
Quanto mais conscientizarmos os nossos filhos de que o abusador pode ser qualquer um, mais os salvaguardamos para que possam livrar-se com unhas e dentes. Explicar que o corpo é só seu e que há partes íntimas que ninguém toca, excepto para efeitos de higiene e saúde, com os devidos limites e respeito pela individualidade.
Hoje escrevo como alerta. Um toque indiscreto é invasão. Não descrevo o horror, a dor que as vítimas sentem. Lembro-as como pessoas merecedoras de dignidade e respeito. Não basta criar comissões para dar a conhecer os casos. Há que criar mecanismos de ajuda, protecção, prevenção e acompanhamento das vítimas.
Diversas vezes é a título pessoal que recorrem a ajuda psicológica para enfrentar o peso da culpa, o lixo que se sentem, o nojo que têm do próprio corpo, os banhos sem fim. Sim, conheço pessoas que sofreram abuso sexual.
O poder maior continua a vigorar, vindo de todos os lados da sociedade. As esquinas vadias onde não há testemunhas, os cantos e recantos do silêncio que amarga a vida, as ruas da imundície de que custa falar e parece que só acontece aos outros. Precisamos de todos, de um povo que se ergue para cessar o abuso, um povo que denuncia; chega de fazer das crianças objectos e fonte de prazer.
Uma mão na camisola da menina na zona do desenho, não basta os olhos verem? Cócegas? Conversas obscenas? Pais, falem com os filhos. Filhos, contem o que se passa e não tenham vergonha. Escrevem, desenhem, se não conseguirem falar. Até serem escutados.
O abuso é assalto, não é ilusão. Um toque maldoso sente-se. Também o senti enquanto adolescente, numa boleia com um pai de uma amiga. Ele adulto, pessoa conceituada, passou-me a mão na perna, dentro do carro. Mesmo que eu falasse, quem iria acreditar? Por isso as vitimas se calam até ao dia que ganham coragem para relatar as atrocidades.
Ajudemos as crianças a estar atentas, a perceber os lugares de abuso. Esses lugares podem ser a própria casa, na casa da amiga, na igreja, no clube, na escola, na internet, na casa do vizinho e de familiares. Note-se que o fim do abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças também faz parte dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Nem tudo é mau, a comissão instituída para tratar o tabu, as associações que fazem prevenção como a Associação Quebrar o Silêncio, Projecto CARE da APAV e a SFPPP-Associação para a Promoção da Prevenção do Abuso Sexual e Apoio à Vitima, são disso exemplo.
A comissão independente para o estudo dos abusos de menores na Igreja depois de escutar 512 vítimas, depoimentos validados, concluiu que cerca de 4815 crianças sofreram de abuso sexual nos últimos 70 anos. A PJ fez a média no 1.º trimestre de 2022, 5,2 novas vítimas por dia, seja a cada quatro ou cinco horas por dia. Não basta pedir perdão, há que terminar com o flagelo.