Nos meses passados, a linguagem neutra na língua portuguesa tem sido um tema contencioso. Sendo uma língua muito baseada no género, tal como todas as outras línguas românicas, o português tem o binário de género presente em grande parte das suas palavras. Questões linguísticas relacionadas com o género na língua portuguesa não são novas e na década passada tanto linguistas como pessoas queer têm tentado superar esta barreira de género.
Nos últimos tempos, estas alternativas têm-se tornado mais conhecidas pelo público em geral, sendo usadas principalmente na internet. Como é óbvio, tem havido uma forte reacção por parte de alguns segmentos da sociedade, com artigos despejados por jornais a bradar contra esta violação da suposta pureza da língua. A linguagem neutra, argumentam estas pessoas, limita a forma como falamos e é quase como uma “novilíngua orwelliana” originada pela “cultura woke” e a “ideologia de género”.
Para mim, não há nada mais absurdo do que comparar algo que aumenta o vocabulário da nossa língua com a “novilíngua”. Qualquer pessoa que tenha lido o 1984 de George Orwell (de onde esta expressão é adoptada) sabe que é criada para limitar a linguagem e o pensamento, não alimentar novas possibilidades. É em resposta a isto que decido escrever este artigo – para mostrar a minha perspectiva como pessoa não-binária sobre a linguagem neutra na língua portuguesa (e em qualquer outra língua), contrapondo a todas as opiniões que tenho lido de um universo somente cisgénero.
Desde que me lembro que sinto a forma como a língua portuguesa é dominada pelo género como algo restringente, sendo a minha relação com o binário linguístico sempre algo conflituosa. Quando comecei a questionar-me sobre o meu género, esta sensação tornou-se mais intensa. Não conseguia evitar sentir-me perdido na minha própria língua. Era sempre difícil compreender pronomes de género neutro no inglês porque tinha crescido numa língua em que não existia espaço para isso. E isso, consequentemente, tornou difícil a minha reflexão sobre o meu próprio género.
Isto tudo mudou quando descobri o sistema elu/delu. Para mim, foi como se um interruptor se tivesse acendido dentro do meu cérebro. Aqui estava uma forma para falar sobre o que eu estava a sentir. De repente, tinha na minha mão uma chave para aceder a toda uma nova parte da minha própria identidade que tinha estado fechada num nevoeiro de confusão e incompreensão durante toda a minha vida. Finalmente havia uma linguagem para falar sobre coisas que eu não conseguia verbalizar até então de forma satisfatória.
Linguagem é poder e agora tinha o poder de falar sobre mim e comunicar a minha identidade aos outros, de forma que me compreendam. Porque é para isto que a linguagem serve: para comunicarmos com os outros e para os outros nos compreenderem. Se não há palavras para falar sobre algo, então esse algo está perdido nesse nevoeiro.
Eu escrevo isto a favor da linguagem. A favor de descobrir novas formas de comunicar aos outros os nossos sentimentos, as nossas necessidades, as nossas identidades, os nossos medos, os nossos sonhos, as nossas dificuldades, as nossas lutas. A linguagem é uma forma de criar ligações. Sem ela, não somos mais do que fragmentos isolados. Com a linguagem conseguimos recolher os bocados que nos compõem e ser plenos. Aqueles que reagem contra a linguagem neutra apenas têm medo da linguagem e do seu poder para juntar pessoas com diferentes experiências e fazer com que compreendam e as suas lutas diferentes e iguais ao mesmo tempo.
Para mim, a linguagem neutra tem-se tornado numa parte importante da forma como me expresso e tem aumentado a forma como me compreendo a mim próprio, como compreendo os outros e como compreendo o mundo à minha volta. Não nego que seja difícil adoptá-la. A nossa língua é tão dominada pelo género binário que adoptar uma linguagem neutra traz mudanças ao próprio núcleo da língua. É um esforço. É algo que pode criar confusão ao início. Mas é algo que traz oportunidade para alargar e mudar a forma como compreendemos o mundo e nós próprios. E é para isso que a linguagem serve.