Escrevo para não me calar de vez. E escrevo exausta. Perdoem-me o facto de ter demorado três horas e meia a fazer menos de 20 km, uma hora e meia de manhã e duas horas à tarde, nove km para lá e outros nove km para cá. Se fossem contabilizadas as horas das deslocações, quantas horas de trabalho teríamos por semana? E sou jovem. Não basta desabafar sobre isto ao jantar, em família, tenho de falar para mais gente. É o egocentrismo obrigatório, já que padecemos de palco. E de público.
Não sou socióloga, mas, desde que fiquei sem carro, tenho vivido experiências sociais muito interessantes. Bendita a hora em que soube, na pele, o que é ser do povo. Sempre gritei que o povo é quem mais ordena. Hoje sei que, na prática, continua a não ordenar coisa nenhuma: obedece e sobrevive. Mas canto na mesma, a Grândola e outras. Sou cantora. Até que a voz me doa, hei de andar por aqui. Resta saber se as pessoas que fazem todos os dias o que eu fiz hoje, esporadicamente, têm sequer espaço para respirar, quanto mais para gritar. É que o autocarro ia cheio. Cheio a sério, daquelas vezes em que já só abrem as portas da saída para as pessoas (wait for it!) entrarem.
Greve da CP até ao final do mês de abril. Entre Sintra e Cascais não há comboio, há autocarros brancos e amarelos, os segundos da Carris, e alguns quilómetros a pé. Esqueçam os tuk-tuk turísticos e os jipes cool de caixa aberta e os autocarros vermelhos com explicações históricas e os comboios quase de brincar e as charretes com cavalos, que estão também umas boas horas a trabalhar de sol a sol e de chuva a chuva, coordenados pelo nosso provincianismo cosmopolita que quer agradar a estrangeiros. Esses são caros, sobem e descem rotas de curto curso, contribuem para o meio ambiente como não mandam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e não servem as pessoas que moram nos lugares onde eles circulam. Tudo equilibrado.
Tinha de estar às 14h na Amoreira, um bairro entre o Estoril e Cascais. Parece fino, só que não. Saí de casa às 11h30 para apanhar o autocarro às 12h. Como não dá para chegar tarde a uma audição e como o autocarro seguinte só saía às 14h, tive de sair de casa com muito tempo de antecedência. Menos mal, sobrou tempo para fazer um último ensaio e para me lembrar do meu pai, que ia para a estação apanhar o comboio (quando a CP ainda não fazia greve) uns bons quarenta e cinco minutos antes do horário. É melhor ser alegre que ser triste, malta. Para triste, já basta o que basta. Adiante.
Na hora do regresso, que foi por volta das 18h, tive de andar outra meia hora para chegar à paragem. Acontece que era hora de ponta e, como tal, as pessoas vinham em estado de ponta, que é para não dizer de sítio. Deu para ver uma mulher partir um telemóvel por responsabilidade de outra, com direito a ofensas verbais agressivas. Felizmente, uma ficou dentro de portas e outra fora, ou acredito que teria havido olhos negros, incluindo um dos meus, que estava ali ao lado e certamente me meteria no meio. A imaginação fica rica quando se anda num meio de transporte à pinha. Também deu para ouvir uma conversa irónica (“Boa tarde também para si!”) entre um senhor francamente zangado com a vida e o motorista francamente simpático, que vinha a ouvir músicas que me fizeram rir todo o santo caminho. Uma delas eu fixei: era do Luan Santana e chama-se Ilha. Deixo a sugestão, se nada mais estiver a funcionar convosco. “E quando 'tá p'ra se afogar no mar da vida, vem alguém, vem alguém que se torna ilha”. O que eu não pedi por uma naquele momento. Rir para não chorar. Tantas alusões brasileiras.
Cheguei a casa às 20h. Não sei se esta audição passará de audição, mas gastei dez euros, entre viagens e almoço. A vida há de devolver-mos a multiplicar, nem que seja por zero. Também não sei se fui racista, mas percebi que a maior parte das pessoas que ia nos dois autocarros em que andei não eram brancas. A vida não custa a toda a gente, normalmente custa muito aos mesmos, que andam num remoinho sem esperança de vento. A rajada que apanhei hoje serviu-me de exemplo e de humildade. Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico