Os mosquitos não são os maiores assassinos do mundo animal
Embora seja tentador eleger os mosquitos como os maiores assassinos do planeta, tal não parece corresponder à realidade. Isto por uma questão de justiça para com os mosquitos.
Uma pesquisa na Internet por “animais mais mortíferos do mundo” conduz a múltiplas listas de animais, ordenados pelo número estimado de pessoas que matam todos os anos. Estas listas incluem habitualmente tubarões, leões, cobras e seres humanos, entre diversos outros animais. Mas o topo destes rankings é invariavelmente ocupado pelos mosquitos, consistentemente considerados os maiores assassinos de todos os animais. Talvez isto não seja surpreendente, se tivermos em conta o número de mortes causadas por doenças transmitidas por mosquitos. No entanto é, também, tecnicamente incorreto.
Os mosquitos são responsáveis pela transmissão dos agentes causadores de várias doenças, incluindo, entre outras, Zika, febre amarela, dengue e malária. Apenas esta última causa mais de 600.000 mortes todos os anos, sobretudo de crianças até aos cinco anos de idade, um número que permanece inaceitavelmente alto nos dias de hoje.
Sendo inquestionável que os mosquitos são de facto responsáveis pela transmissão da malária e de outras doenças mortais, a verdade é que não são os mosquitos que efetivamente matam as pessoas. De uma forma geral, os animais matam seres humanos quando se sentem ameaçados, para protegerem as suas crias, ou para satisfazerem as suas necessidades alimentares. Por outras palavras, os animais matam para sobreviver, e as mortes que causam resultam de uma intenção deliberada de atacar e, por vezes, matar.
Já os mosquitos fêmea necessitam de se alimentar do sangue de seres humanos (ou de outros mamíferos) para se reproduzirem. Na eventualidade de um destes mosquitos estar infetado com um agente patogénico, esse agente pode ser transmitido ao ser humano quando este é picado. Trata-se de um “efeito colateral” dessa refeição de sangue, mas não é certamente o seu objetivo principal.
Todos conhecemos as consequências desagradáveis de uma picada de mosquito, mas não existem relatos de mortes causadas por reações anafiláticas daí resultantes. Por mais incomodativos que os mosquitos sejam, o seu impacto direto na vida dos seres humanos não é comparável ao de animais que matam com o intuito de se alimentarem ou de se protegerem do que entendem como ameaças.
Embora seja tentador eleger os mosquitos como os maiores assassinos do planeta, tal não parece corresponder à realidade. Atribuir aos mosquitos as mortes causadas pela malária ou por outras doenças por eles transmitidas equivaleria a atribuir aos seres humanos as mortes por tuberculose, sida, covid-19 ou outras doenças infeciosas que se transmitem diretamente de uma pessoa para outra.
Os seres humanos já figuram em todas as listas de “animais mais mortíferos do mundo”, em virtude das suas abomináveis ações, incluindo guerras e homicídios. Se a esse número adicionássemos as mortes causadas pela transmissão de agentes patogénicos letais entre seres humanos, passaríamos automaticamente a ocupar o topo de qualquer lista de animais assassinos.
O impacto de doenças causadas por mosquitos justifica plenamente todos os esforços que possam ser feitos para compreender a sua biologia e a sua ecologia, bem como para implementar e otimizar medidas de controlo das suas populações e de restrição do seu contacto com os seres humanos. Esse impacto justifica certamente os avisos feitos por Bill Gates, uma das pessoas que mais têm feito pela luta contra a malária e outras doenças tropicais, relativamente ao perigo que os mosquitos representam.
Contudo, de um ponto de vista estritamente técnico, os mosquitos não podem ser acusados de homicídio mais do que qualquer pessoa que inadvertidamente transmita a outra Mycobacterium tuberculosis, VIH ou SARS-CoV-2 (os agentes causadores de tuberculose, sida e covid-19, respetivamente) pode ser alvo de idêntica acusação.
Desta forma, embora o sofrimento indireto que causam nos permita compreender a tentação de colocar os mosquitos no topo da lista dos “mais procurados”, não podemos deixar de nos questionar sobre se a sua reputação de “animais mais mortíferos do mundo” é inteiramente justa.
Este texto é uma adaptação de um artigo publicado pelo autor na revista científica Trends in Parasitology (2020), volume 36, páginas 876-877
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico